3 Congresso Internacional de DESIGN DA INFORMAÇÃO
Curitiba – 2007
A imagem digital tem sido interpretada e fundamentada segundo diferentes posições e perspectivas, as quais têm gerado um amplo debate em torno desta questão. Para uns, a imagem digital é simulacro apresentando-se como uma pretensa cópia. Para outros, a imagem digital é um epifenômeno ilusório, pois seu fundamento é um código de natureza binária alojado no computador. Ambas posições a concebem num quadro platônico, no qual existe uma diferença entre aparência e essência. Entretanto, a imagem digital pode ser concebida de uma outra perspectiva, como fenômeno portador de uma realidade ontológica e epistemológica. Trata-se de compreendê-la como fluxo, movimento. De fato, a imagem digital por sua natureza de matriz manipulável engendra sempre um movimento, seja de natureza interna ou externa. Interna como as experiências de Motion graphics. Externas como a Hipermídia. Mesmo quando parada, a imagem digital pode ser concebida como um movimento infinitamente pequeno, virtual. A fenomenologia de Bergson torna-se então uma importante matriz conceitual para a fundamentação deste tipo de imagem. Trata-se então, neste trabalho, de introduzir as teses de Bergson sobre a imagem-movimento, extraindo delas algumas conseqüências para a fundamentação da imagem digital.
A imagem-movimento
A imagem digital tem sido interpretada e fundamentada segundo diferentes posições e perspectivas, as quais têm gerado um amplo debate em torno desta questão. Para uns, a imagem digital é simulacro apresentando-se como uma pretensa cópia. Baudrillard (1994) ao comparar a fotografia com a imagem digital conclui pela natureza de simulacro desta última. A fotografia guarda uma relação de traço com o modelo, ou a realidade, da qual ela é referenciada. Já a imagem digital é gerada por meio de uma matriz que não guarda nenhuma relação com um modelo externo, mas é a emanação de um código escondido no computador, puro simulacro. Para Kittler (1999), estamos a caminho da era da pós-mídia, pois todas as mídias convergirão para uma única materialidade: o código binário. Este código é a verdade da mídia, sendo as imagens geradas por ele apenas epifenômenos ilusórios. Ambas posições concebem a imagem num quadro platônico, no qual existe uma diferença entre aparência e essência. Entretanto, a imagem digital pode ser concebida de uma outra perspectiva, como fenômeno portador de uma realidade ontológica e epistemológica. Trata-se de compreendê-la como fluxo, movimento. De fato, a imagem digital por sua natureza de matriz manipulável engendra sempre um movimento, seja de natureza interna ou externa. Interna como as experiências de Motion graphics. Externas como a Hipermídia. Mesmo quando parada, a imagem digital pode ser concebida como um movimento infinitamente pequeno, virtual. A fenomenologia de Bergson torna-se então uma importante matriz conceitual para a fundamentação deste tipo de imagem.
Uma das conseqüências da presença ubíqua dos computadores e da dinâmica de nossos meios de comunicação é a percepção do tempo como algo em fluxo; acontecimento em tempo-real. Consoante com esta presença ocorre o ressurgimento da filosofia fenomenológica de Bergson e sua visada em relação ao tempo e, principalmente, a multiplicidade. Gilles Deleuze é um, senão o maior, responsável por este surgimento, ao se debruçar sobre o pensamento de Bergson. Mais recentemente o trabalho de Hansen (2004), “New Philosophy for New Media”, acrescenta uma importante contribuição para este debate.
No pensamento de Bergson as coisas não são substâncias independentes do tempo e do devir, mas “fases” de um devir, de um tornar-se. Em outros termos, uma coisa não é o efeito de uma causa, mas a expressão de uma “tendência”. A tendência é uma fase do vir-a-ser. Bergson constrói uma ontologia em que a vida e o mundo se tornam imagem-movimento, na qual as coisas estão em perpétua variação umas em relação às outras. Quando pensamos na relação estética com um objeto, imediatamente pensamos na fruição do espaço e do movimento. Quando pensamos em movimento, imediatamente pensamos num ponto se deslocando no espaço, que é a forma típica da física moderna encarar a noção de tempo. Uma das características desta ciência é a de se negar a tratar o problema da mudança ontológica e o reduzir a questão da mudança à da deslocação de partículas no espaço. Ao contrário, Bergson constrói uma ontologia em que a vida e o mundo se tornam imagem-movimento, na qual as coisas estão em perpétua variação umas em relação às outras. Por que Bergson se utiliza da palavra imagem? Trata-se de imagem enquanto “imago”, ou seja, aquilo que aparece enquanto aparecer, em outros termos, um fenômeno.
O pensamento de Bergson teve uma enorme influência na crítica de arte e na estética da primeira metade do século XX. A nova forma do cubismo entender o espaço, por meio de um tempo interior aos objetos, tem enormes relações com a filosofia de Bergson. Entretanto a expressão estética do bergsonismo é o simultaneismo elaborado principalmente por Delaunay e Léger. Seus trabalhos neste vertente caracterizam-se pela presença constante de arcos e círculos, os quais são a expressão do simultaneismo, ou seja o tempo apreendido enquanto conjunto. Trata-se de uma pesquisa e uma captura do desmensurável, ou do infinito atualizado, de um sublime visual, ou seja, do conjunto do tempo. O simultaneismo é a imensidão do futuro e do passado enquanto simultâneos no conjunto do tempo. Assim, por exemplo, um círculo de Delaunay é uma reposta à questão o que é o conjunto do tempo? (Deleuze 1998). No design gráfico, temos as experiências tipográficas do futurismo e dadaísmo nas quais aparecem o círculo e o semicírculo como expressão deste conjunto do tempo.
Essa ontologia conduz a uma nova forma de conceber o tempo em relação com o conceito de multiplicidade heterogênea. Assim, um bom caminho para compreender o conceito de tempo bergsoniano é analisar o conceito de multiplicidade, o qual se pretende aqui esboçar em seus contornos gerais.
O conceito de multiplicidade tem dois desenvolvimentos filosóficos durante o século XX. Um é a fenomenologia influenciada por Husserl, o outro é o bergsonismo (Deleuze 1998). Existem algumas semelhanças e enormes diferenças entre essas duas tendências filosóficas. Uma das diferenças é o tratamento da multiplicidade. Para a fenomenologia, em geral, a multiplicidade dos fenômenos está relacionada a uma unidade processada na consciência. Já no bergsonismo tudo é multiplicidade, inclusive “os dados imediatos da consciência” (Bergson [1888] 2001). A afirmação bergsoniana guarda uma sutil diferença em relação à fenomenologia. Enquanto que para esta última os dados são para a consciência; em Bergson os dados são da consciência.
Já em sua primeira grande obra “Essai sur les données immédiates de la conscience”, Bergson polemiza com Kant, pois para Bergson, Kant concebeu a liberdade como fora do tempo e do espaço, porque, enquanto as funções de conhecimento têm como fundamento a sensibilidade espaço-temporal, a faculdade prática e a atividade moral opõem-se a toda determinação sensível. O tempo é uma forma aplicável aos fenômenos, ou seja, aos objetos do conhecimento. A alma humana, a consciência moral e a vontade livre são alheias ao espaço e ao tempo.
Para Bergson, Kant confundiu o espaço e o tempo como um misto não passível de diferenciação. Conseqüente a isso, Kant concebeu a liberdade da vontade segundo dois contextos diferentes. Primeiro, considerou-a no quadro do mundo fenomênico, efetuando-se no mundo sensível, no qual cada uma de nossas ações tem suas causas e, portanto, está integralmente determinada. Neste contexto a vontade não é absolutamente livre. Segundo, Kant considerou a vontade no contexto do mundo inteligível, no qual ela não está sob o aspecto de causa, de determinação, mas sob o aspecto do dever. Objetiva a prática do bem. Este é o efeito possível da liberdade do ponto de vista moral. Nesse contexto a vontade somente pode ser concebida como livre, não determinada por nenhum tipo de causa.
Bergson, ao contrário de Kant, a fim de definir consciência e conseqüentemente liberdade, propõe estabelecer uma diferença entre tempo e espaço. Trata-se então de separar os elementos de um misto, com o objetivo de estabelecer elementos simples passíveis de uma intuição e problematizar corretamente as coisas. Assim, Bergson definirá os dados imediatos da consciência como sendo de natureza temporal, em outros termos como duração (no vocabulário de Bergson: durée). Na duração não existe justaposição dos eventos, conseqüentemente não existe causalidade; assim é neste contexto que podemos falar de liberdade. Portanto, é exatamente no contexto no qual Kant considera que não existe propriamente liberdade, pois é o contexto do sensível, no qual os eventos estão submetidos às leis da causalidade, que Bergson situa a duração e a concebe como liberdade. Trata-se então de uma liberdade incorporada, materializada por meio de atos no mundo sensível.
Para Bergson devemos compreender a duração como uma multiplicidade qualitativa, a qual é oposta à multiplicidade quantitativa. Em sua primeira grande obra, Bergson assim se expressa a esse respeito:
Não é suficiente dizer que o numeral é uma coleção de unidades: é necessário acrescentar que essas unidades são idênticas entre si, ou ao menos que elas supõem identidades desde que se as conte. Sem dúvida, contar-se-á as ovelhas de um rebanho e dir-se-á que totalizam cinqüenta; mesmo que elas se distinguam uma das outras e o pastor possa reconhecê-las individualmente. Neste caso, então, negligencia-se suas diferenças individuais realçando sua função comum.
(Bergson, [1888] 2001, p:39).
O exemplo acima de Bergson nos é útil para distinguir uma multiplicidade quantitativa de uma multiplicidade qualitativa e, com essa distinção, estabelecer a diferença entre espaço e tempo. Quando observamos um rebanho de ovelhas, podemos perceber imediatamente a semelhança entre elas; portanto uma multiplicidade quantitativa é sempre homogênea. Porém, podemos, a despeito dessa homogeneidade, numerar as ovelhas desse rebanho. Somos capazes de enumerá-las porque cada ovelha está espacialmente separada, ou seja, as ovelhas estão justapostas umas às outras. Então, cada uma delas ocupa uma localização discernível; por conseguinte, multiplicidades quantitativas são homogêneas e espaciais.
Devido ao fato de uma multiplicidade quantitativa ser homogênea, podemos representá-la por meio de um símbolo, por exemplo, a soma “50”.
Ao contrário das multiplicidades quantitativas, multiplicidades qualitativas são heterogêneas e temporais. Isto é uma idéia difícil de ser assimilada, pois ela marcha contra a tradição de pensamento da metafísica ocidental; já que quando pensamos em heterogeneidade, pensamos em justaposição. Mas, na duração, heterogeneidade não implica em justaposição, ou implica apenas retrospectivamente:
É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, uma vez os tendo ultrapassado, em me volto para observar-lhes os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão solidamente organizados, tão profundamente animados com uma vida comum, que eu não teria podido dizer onde qualquer um deles termina, onde começa o outro.
(Bergson, [1903] 1979, p:16).
Para melhor compreender esta difícil questão, Bergson nos dá um exemplo de uma multiplicidade qualitativa. O exemplo é o sentimento de simpatia, que é um sentimento moral e estético:
Essa simpatia se produz, em particular, quando a natureza nos apresenta seres com proporções normais, nos quais nossa atenção se divide igualmente entre todas as partes da figura sem se fixar em nenhuma delas. Nossa faculdade de perceber se encontra então embalada por uma espécie de harmonia […] na qual o todo e as partes se integram […] as partes refletem o todo e o todo as partes […] Resulta dessa análise que o sentimento do belo não é um sentimento especial, mas que todo sentimento experimentado por nós se reveste de um caráter estético.
(Bergson, [1888] 2001, p:13-14).
Nossa experiência de simpatia começa, de acordo com Bergson, quando nos colocamos no lugar dos outros. Trata-se então de associar simpatia com compaixão, colocando Bergson numa tradição moral com antecessores como Jean-Jacques Rousseau e David Hume. Compadecer é “sofrer com”. Ter compaixão é a virtude de compartilhar o sofrimento do outro. Hume definiu o conceito de simpatia em seu Tratado da Natureza Humana ([1738] 1978): “Ninguém é completamente indiferente à felicidade ou miséria dos outros”. A idéia de que simpatia é um sentimento político que vincula as pessoas umas às outras forma um dos principais conceitos da filosofia de Hume (Deleuze 1993). Para esse filósofo, o conceito de simpatia é ampliado, não se prendendo unicamente à capacidade de se colocar no lugar do outro, ou à capacidade de “sofrer junto” (compaixão). Mas, trata-se de um sentimento de afecção entre os homens e o mundo. A compaixão e a piedade serão dois sentimentos de fundamental importância na filosofia de Rousseau.
Bergson parece mesclar a simpatia humeniana com a compaixão rousseauniana criando um complexo de sentimentos que seria o exemplo de uma multiplicidade qualitativa. Assim ele distingue dois movimentos da simpatia. O primeiro, que ele chama de “forma inferior de piedade”, no qual procuramos ajudar alguém que sofre com o interesse de também ser ajudado quando nos encontrarmos na mesma situação. Aqui temos um movimento, da repugnância inicial para o medo de se encontrar na mesma situação. O segundo movimento é chamado por Bergson de “forma superior de piedade”. Agora não ajudamos alguém que precisa somente por medo de um dia, na mesma situação, não ser ajudado. Esta simpatia desenvolve sentimentos superiores de altruísmo nos colocando numa posição fora do próprio sofrimento. Entretanto, também nos conduz para uma humildade, pois sabemos que poderemos um dia estar na mesma situação, afinal somos, por princípio todos iguais perante a dor. A essência da piedade é então uma necessidade de humilhação própria, uma aspiração em direção ao inferior, ao sofrimento.
Assim, segundo Bergson, existem um movimento que se expressa numa transição da repugnância para o medo, do medo para a simpatia, e da própria simpatia para a humildade.
Esse exemplo é importante, pois, primeiro, ele demonstra um método típico de Bergson: começar por investigar as questões pelas nossas percepções e afecções internas; para, em seguida, referenciá-las na realidade exterior. Segundo, ele marca a importância da afecção para o conceito de percepção de Bergson. Nossa relação com o mundo, ou seja, com a imagem-movimento se dará primordialmente pela faculdade da afecção.
Para Bergson existe uma heterogeneidade de sentimentos na simpatia, porém não somos capazes de justapô-los ou mesmo dizer que um nega o outro. Não existe negação na duração. Os sentimentos são contínuos uns com os outros; eles se interpenetram. A multiplicidade qualitativa é então heterogênea (ou singularizada), contínua (ou interpenetrante), relativa a oposições ou dualística nos extremos (no caso da simpatia, piedade inferior e piedade superior são os extremos), progressiva (temporal), um fluxo irreversível, o qual não é dado todo de uma vez. Por conseguinte, a multiplicidade qualitativa não pode ser adequadamente representada por um símbolo; de fato, segundo Bergson, a multiplicidade qualitativa é inexprimível. Trata-se então de uma progressiva mobilidade temporal. Para Bergson a liberdade é duração, ou seja, mobilidade. Liberdade não é mais um atributo de um sujeito (livre-arbítrio), mas uma mobilidade incorporada no sensível.
Em sua “Introdução à Metafísica”, Bergson nos dá três interessantes exemplos que nos ajudam a pensar a duração como multiplicidades qualitativas (Bergson, [1903] 1979, p:16-17). Trata-se de três imagens cuja analogia nos aproxima da duração, sem contudo representá-la. Como vimos, a duração por ser fluxo contínuo e permanente não pode ser fixada por um símbolo.
A primeira imagem é a de dois novelos pelos quais corre uma linha. Um dos novelos enrola a linha, o outro, a desenrola. O ato de desenrolar o novelo caracteriza o tempo que passa; viver consiste em envelhecer. “Não há ser vivo que não se sinta chegar pouco a pouco ao fim de sua meada” (Bergson, [1903] 1979, p:16). Mas a duração é também um enrolar-se contínuo, pois nosso passado nos segue sem cessar a cada presente que incorpora em seu caminho. Assim, para Bergson, consciência significa memória.
Entretanto, se esta imagem nos dá uma boa idéia do que seja a duração, ela também possui limitações ao tentar representá-la. Esta imagem evoca a representação de linhas e superfícies cujas partes são homogêneas e podem ser sobrepostas ou justapostas. Porém na duração não há dois momentos idênticos, pois o momentos seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou. Uma consciência que possuísse dois momentos idênticos seria uma consciência sem memória, dado que na significação de qualquer evento presente a memória desempenha papel fundamental. A conclusão é que a imagem dos novelos desenrolando-se e enrolando-se não é suficiente para explicar a duração.
Bergson parte então para uma segunda imagem. Um espectro com mil nuances, um gradiente no qual a passagem de uma cor à outra é imperceptível. As cores estão de tal forma entrelaçadas umas nas outras que não há delimitação clara na sua passagem. A duração seria então a imagem de uma corrente de sentimento que ao atravessar o espectro o tingi, cada vez, com uma das nuances. A experiência seria então de mudanças graduais, cada uma anunciando a seguinte e resumindo nela as que a precedem. Essa imagem é melhor que a anterior, pois os elementos representam uma situação menos homogênea que a precedente. Entretanto, também esta imagem é incompleta para explicar a duração; pois as nuances sucessivas do espectro são exteriores umas às outras. Elas se justapõem e ocupam espaço. Já a duração exclui toda idéia de justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão.
Bergson então formula uma última imagem. Trata-se de um elástico infinitamente pequeno, contraído num ponto matemático. Ao esticá-lo progressivamente vemos uma linha que irá sempre se encompridando. Se fixarmos nossa atenção para o ato e não para a linha, veremos que esta ação é indivisível, imaginando que ela está sendo realizada sem interrupção; já que não é a ação de mover que é divisível, mas a linha imóvel que deixa atrás de si como um traço no espaço. Assim, se descartarmos “o espaço que subjaz ao movimento para levar em conta somente o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão, enfim a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem mais fiel de nosso desenvolvimento na duração” (Bergson, [1903] 1979, p:16).
Entretanto, mesmo esta última imagem não é exatamente uma representação da duração. Isto porque o desenrolar-se de nossa duração se assemelha em certos aspectos à unidade do movimento que progride e, nesse caso, a imagem é muito fiel. Porém o desenrolar-se da duração também se assemelha a uma multiplicidade de estados que se espalham, e, nesse caso, a última imagem é incompleta. Segundo Bergson nenhuma metáfora pode dar conta de um desses aspectos sem sacrificar o outro. Assim:
Se evoco um espectro de mil nuances, tenho diante de mim uma coisa completamente pronta, ao passo que a duração se faz continuamente. Se penso num elástico que se alonga, numa mola que se encolhe ou se distende, esqueço a riqueza de colorido que é característica da duração vivida para não ver mais que o movimento simples pelo qual a consciência passa de um tom ao outro.
(Bergson, [1903] 1979, p:17).
A duração consiste de duas características: unidade e multiplicidade. Então, o tempo cronológico, mensurável, métrico deve ser distinguido de uma “duração” que é pura qualidade, progresso, que não escoa de forma mecânica como um relógio, mas, ao contrário qualitativamente ligada à vida, com uma incorporação fundamental na existência. Para Bergson, a vida é multiplicidade temporal, variação qualitativa. Não somente a vida em seu sentido geral, mas também a memória, na qual se dará a compreensão da vida psíquica como devir e duração. Uma realidade temporal como a consciência humana é uma realidade que dura, muda e se diferencia. O conceito de duração encerra uma dupla idéia: passagem e conservação. Para que haja mudança ou diferenciação é necessário que alguma coisa passe, tenha passado e se conserve. O conceito de tempo ou de duração requer uma passagem em direção ao passado e uma conservação desse passado. Sem esses dois aspectos, não existe nem tempo, nem duração. Por isso a importância para Bergson da memória, que será o principal tema de sua monumental obra “Matéria e Memória” ( [1896] 1990). Por memória se entende um princípio de conservação do passado, o qual não é aquilo que passou ou desapareceu, mas, ao contrário, o que se conserva. Não se trata da necessidade de se lembrar de tudo, mas simplesmente que a memória é absolutamente integral. A questão é entender porque esta ou aquela memória é experimentada pela consciência, e porque todo o resto das experiências passadas permanece no estado virtual ou inconsciente.
A memória não é somente o princípio de conservação do passado, mas também o retorno incessante do passado em direção ao presente, a presença do passado no presente ou para este presente. Trata-se de pura ontologia. Em Bergson é o passado que é ontológico, enquanto o presente é psicológico. Guattari descreve uma experiência que testemunha a memória ativa bergsoniana:
Um dia, quando eu caminhava com um grupo de amigos em uma grande avenida de São Paulo, senti-me interpelado, ao atravessar uma determinada ponte, por um locutor não-localizável. Uma das características dessa cidade, que me parece estranha em vários aspectos, consiste no fato de que as interseções de suas ruas procedem freqüentemente por níveis separados com grandes alturas. Enquanto meu olhar se dirigia, de cima para baixo, para uma circulação densa que caminhava rapidamente, formando uma mancha cinzenta infinita, uma impressão intensa, fugaz e indefinível invadiu-me bruscamente. Pedi então que meus amigos continuassem sua caminhada sem mim e, como em um eco das paradas de Proust em seus ‘momentos fecundos’ (o sabor da madalena, a dança dos sinos de Martinville, a pequena frase musical de Vinteuil, o chão desnivelado do pátio do hotel de Guermante…), imobilizei-me em um esforço para esclarecer o que acabava de acontecer comigo. Ao fim de um certo tempo, a resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente perceptiva.
(Guattari, 2006, p:154).
Assim, o momento presente de nossa vida não é e nem pode ser um recomeço do zero. Cada ato que cumprimos, cada momento vivido presentemente convoca nossa experiência anterior e a reativa, isto é, torna novamente viva ou consciente nossa experiência anterior. Não importa qual é a experiência interior, o que interessa é a ação presente na qual estou comprometido. Assim, quando levanto de manhã, não necessito reaprender a andar; simplesmente começa a andar, reativo novamente toda a minha experiência anterior do andar. Mesmo quando não expressa uma experiência consciente ou refletiva, minha ação torna viva experiências do passado. Toda vivência da consciência faz surgir a lembrança que a torna possível, segundo diversos graus de possibilidade. Esta é a razão pela qual Bergson diz:
Consciência significa primeiramente memória. À memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do passado; ela pode reter apenas o que acaba de acontecer; mas a memória existe, ou então não existe consciência. Uma consciência que não conservasse nada de seu passado, que se esquecesse sem cessar de si própria, pereceria e renasceria a cada instante; como definir de outra forma a inconsciência? […] Toda consciência é, pois, memória – conservação e acumulação do passado no presente.
(Bergson, [1919] 2001, p:819).
Mais adiante ele acrescenta:
Mas toda consciência é antecipação do futuro. Consideremos a direção de nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que ele é, mas sobretudo em vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e não há consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos chama, ou melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do tempo, é também a causa de que ajamos continuadamente. Toda ação é um penetrar no futuro.
(Bergson, [1919] 2001, p:819).
Podemos dizer então que se a consciência é essencialmente duração. Não importa qual vivência da consciência é experimentada, o fato é que sempre ocorre uma certa relação, cada vez singular, do presente no passado; ou, em outros termos, um certo retorno do passado no presente. Esta relação com o passado é sempre singular porque existe infinitos modos de se relacionar com este passado, infinitos modos de retorno ao passado. Num certo sentido, o presente é diferente porque o passado retorna sempre de forma diferente, enriquecendo-o a cada retorno. Não é essa a experiência que temos ao fruir uma peça de Motion graphic? Ou ao navegar por uma hipermídia?
As lembranças nos chegam de diferentes formas, mais ou menos conscientes ou exprimidas. Por exemplo, a lembrança de um encontro acontecido no passado pode ser voluntariamente reativado, ou seja, o objeto de uma consciência atenta. Entretanto o puro hábito motor que eu convoco para andar, se não é consciente no sentido estrito, não deixa de pertencer à vida da consciência porque torna sensíveis experiências acumuladas no passado.
Cada vivência da consciência, segundo sua modalidade própria, implica uma certa relação de tensão entre passado, presente e futuro. Dado que esta relação define precisamente a duração, em termos bergsonianos então cada ato ou vivência da consciência realiza nela própria uma certa tensão da duração. Esta tensão é sempre qualitativa, ou seja, uma certa intensidade qualitativa da consciência. Poderíamos concluir então que não existe ação que se contente em repetir mecanicamente o passado. Menos o presente se diferencia ou transforma – como no caso do hábito motor, o qual é uma espécie de memória do corpo material – menos a vida da consciência é intensa. A consciência é portadora da mais alta intensidade quando a tensão entre o passado e o presente é produtora de diferenciação, de progresso, de novidade ou ainda de criação. A filosofia de Bergson nos propõe uma nova forma de perceber o tempo e como nós vivemos em relação a ele.
Quando pensamos a imagem na perspectiva da duração bergsoniana, deixamos o espaço, multiplicidade quantitativa, e mergulhamos no tempo multiplicidade qualitativa. Nos deparamos com o que é móbil, fluente, fluxo ininterrupto, porém heterogêneo; não por diferenciação espacial mas pela intensidade. A imagem fluxo é construída por indivíduos, também fluxos, e conjuntos sociais, também fluxos. Trata-se então de fluxos em permanente interação e mútua transformação.
Em sua significação, a imagem digital necessita da memória, não como passado morto, mas como virtualidade capaz de se atualizar no presente construindo significações coletivas. Esse movimento do passado em relação ao presente e às possibilidades do futuro, Bergson chama duração. É nessa duração que a vida é construída. Nessa perspectiva, o pensamento que analisa também deverá mudar para se adequar ao seu objeto. Deverá se libertar de conceitos rígidos e pré-fabricados para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitualmente, isto é, deverá engendrar representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldarem sobre as formas fugidias do mundo sensível em movimento. As experiências em Design de Movimento atestam a necessidade deste preceito. A significação da imagem não está mais em seu fotograma, mas sim no fluxo cuja apreensão do todo é o significado de um tempo vivido. Por tudo isso o bergsonismo permanece um referencial para o pensamento contemporâneo.
Referências
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Bergson, Henri ([1934] 1990). La pensée et le mouvant. Paris: PUF, Quadrige.
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Deleuze, Gilles ([1956] 2005). “La concéption de la difference chez Bergson”. In: Les Etudes Bergsoniennes 4 (1956): 77-112. Paris: PUF.
Guattari, Félix (2006). Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34.
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Manovich, Lev (2001). The Language of New Media. Cambridge, Mass.: MIT Press.
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Vattimo, Gianni (1996). O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós moderna. São Paulo: Martins Fontes.
Virilio, Paul (1993). O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. São Paulo: Editora 34. 3º congresso internacional de design da informação | curitiba | 8 – 10 de outubro | 2007
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