“Summer of Love”. Os inícios da Arte Psicodélica.

A emergência e florescimento da arte psicodélica coincidiu com um dos mais revolucionários e revoltosos períodos do século XX, situado aos finais dos anos 60 e inícios dos 70. O chamado “Summer of Love” foi uma explosão de arte contemporânea e cultura popular que se mesclou com as reivindicações libertárias de pervasivas mudanças sociais com atitudes de desobediência civil. Foi uma celebração com nova sensibilidade e estética psicodélica, atingindo todas as formas de arte: artes visuais, música, filme, arquitetura, design gráfico, teatro, moda, etc.
Criou-se também formas próprias de expressão, hibridizando e sintetizando formas tradicionais em eventos multisensoriais com espírito celebrativo e cerimonial. O Summer of Love reconstruiu o impulso criativo original das ambições utópicas, expandido sua estética para uma ampla esfera cultural e política, alinhando-se com os movimentos de “direitos humanos” e “fim da guerra do Vietnam”. O movimento estético da psicodelia influenciou em muitos aspectos a cultura popular, bem como vários artistas mergulhados no movimento da contracultura, quebrando os limites de disciplinas, gêneros e mídias; com importantes contribuições no design gráfico de cartazes; capas de disco; jornais e revistas undergrounds. Atualmente, graças a cuidadosos e belos trabalhos históricos, várias obras desse período foram recuperadas, notavelmente filmes, vídeos, ambientes multimidiáticos, recriando a experiência imersiva da psicodelia, suas cerimônias de luzes e performances. O movimento espalhou-se pelo mundo afora, inclusive com fortes influências e contribuição original do Brasil. Porém cabe destacar alguns “locus arche”, referências maior para o movimento: “Haight and Ashbury”, que é um subdistrito de São Francisco, Califórnia; UFO nightclube de Londres; Filmore Auditorium em São Francisco; os eventos de Human Be-In em Golden Gate Park, lugar preferido das lendas Allen Ginsberg e Timothy Leary. O início do Summer of Love tem sido popularmente atribuído ao grande evento Human Be-In no Golden Gate Park, em janeiro de 1967. A força e o tamanho desse evento despertou a mídia de massa para a existência da contracultura que estava sendo cultivada em Haight and Ashbury. O movimento foi alimentado pelas mídias contraculturais, especialmente o The San Francisco Oracle, que em 1967 superou a marca de meio milhão de leitores. Cabe destacar também, como grande impulsionador do movimento, o popular teatro e ativismo de rua executados pelos Diggers, importante grupo de referência para a psicodelia e o Movimento Hippie.

A imprensa underground, que emergiu durante os anos 60, foi um instrumento de comunicação alternativa e democratização das ideias. Entre as muitas publicações pelo mundo afora, cabe destacar: Oz magazine; International Times; East Village Other; San Francisco Oracle. Estas e outras publicações providenciaram um rico retrato de um agitado período com mudanças morais e políticas. Eles testemunham também um extraordinário jorrar de criatividade que revolucionou o vocabulário do design gráfico. Pouco a pouco, colegiais e estudantes universitários começaram a afluir para Haight and Ashbury, tornando-se milhares na primavera de 1967 e transformando o “locus arche” da psicodelia numa explosão de criatividade com arte espontânea de rua. Cores, muitas cores. O governo da área começou a se preocupar com esses eventos e tentaram bloquear a ida dos estudantes em direção ao “locus arche”. Porém, as férias de verão e uma série de artigos e reportagens nas mídias de massa tornou completamente impossível as intenções governamentais. Na primavera de 1967, líderes comunitários de Haight and Ashbury criaram o “Conselho do ‘Verão do Amor’”, dando ao evento uma enorme popularidade via boca-a-boca. Durante esse “Verão do Amor”, cerca de 1000.000 jovens de todo o mundo se reuniram no distrito de Haight and Ashbury, mas também em Berkeley e outras cidades de São Francisco. Todos reunidos para uma grande versão popular da “experiência hippie”, com comida gratuita e amor livre. Existiam também, providenciadas pelos organizadores, clínicas de saúde, para atender eventuais abusos ou mesmo tratamento médico para os necessitados. Barracas com artigos baratos também eram oferecidos aos que necessitavam de alguma coisa extra. O Summer of Love atraiu um grande número de pessoas de várias idades, de adolescentes a adultos maduros, todos fascinados por aderir a uma utopia cultural e política. Entretanto, o grande fluxo de pessoas não deixou de causar problemas. O bairro não podia acomodar tanta gente e os organizadores não conseguiram escalonar o movimento para uma dimensão de massa. Rapidamente a cena de Haight and Ashbury, ao longo do tempo, deteriorou-se devido à superlotação, falta de moradia, fome e problemas com drogas e criminalidade. Por tudo isso, deterioraram-se também as relações entre os eventos e os moradores de Haight and Ashbury, as quais, nos inícios, transcorreram-se de forma harmônica e pacífica. Ao chegar o outono, muitas pessoas deixaram o “locus arche” por várias razões, especialmente para voltarem a suas atividades estudantis. Porém ao voltarem para suas casas, comunidades e escolas trouxeram junto a elas uma marcante experiência com novas ideias, comportamentos, roupas, modas e formas de vida que se espalharam pelas cidades dos EUA e pelo mundo.

Naturalmente, como todo movimento estética a psicodelia não surgiu do nada. Gerações passadas já exploravam as dimensões da psicodelia em formas e palavras, teorizando-as também. Porém, permaneciam restritas aos pequenos círculos intelectuais. Do ponto de vista estético e poético, podemos traçar uma linha que vai dos artistas pré-rafaelitas, passando pela Art Noveau e a “Beat Generation“, até a arte psicodélica propriamente dita, a qual guardou as profundas influências desses predecessores citados. Notadamente, no design gráfico existem evidentes semelhanças formais e poéticas com o Art Noveau, especialmente no uso dos padrões florais e cuidado com os detalhes, seguindo a influência e orientação de Gustav Klimt. A Beat Generation foi o primeiro grande passo em busca de uma mudança política e cultural na sociedade americana ou no estilo dominante “american way life”, o qual foi exportado para o resto do mundo. Apesar de ter sido predominantemente um movimento literário, os chamados “beatniks” tiveram uma grande influência na Nova Esquerda e no Movimento Hippie. Sua literatura foi fortemente influenciada pelos problemas políticos e da geo-política engendrados após a Segunda Grande Guerra. Jack Kerouac e Allen Ginsberg foram dois representantes do movimento bastante populares e influentes, com fortes repercussões no movimento Hippie e sua arte psicodélica. As atitudes e visão de mundo (Weltanschauung) da Beat Generation engendraram a base do movimento Hippie, embora os beatniks tivessem uma visão mais pessimista e com menos empenho de mudanças políticas em movimentos grupais. Permaneceram algo individualistas, solitários e rebeldes às restrições comunitárias. Apesar de todas influência e preparação anterior, não se pode também negar uma forte especificidade histórica e formal na arte psicodélica e no Movimento Hippie. A arte psicodélica se distingui pelo uso exuberante da cor, das formas ornamentais, da estrutura complexa com obsessiva atenção para os detalhes. As formas expressam os estados de consciência expandidos ou alterados pela música, luz, meditação e substâncias alucinógenas.

Recentemente podemos ver um interesse pelo revival desse estilo estético, que expressa formas de viver, habitar e perceber o mundo. Ele tem capturado novamente a imaginação de artistas, designers e filmmakers. Entretanto as atitudes em relação a esse movimento cultural vão desde uma reflexão e estudo profundos até uma superficial apropriação pós-moderna, a qual apenas procura exaltar o aspecto e a aparência vintage daquilo que foi uma “era de ouro”. Enquanto alguns artistas procuram realizar uma reflexão do movimento enquanto momento libertário que também sofreu o drama das muitas “promessas não cumpridas” pela história. Enfim, a relação entre o presente e esse momento numinoso da história se manifesta por uma leitura histórica a “contrapelo”, como propôs Walter Benjamin. A exigência fundamental de Benjamin é escrever a história a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos — contra a tradição conformista do historicismo que comumente entra “em empatia com o vencedor” (1971). Rejeitando o culto moderno da Deusa Progresso, Benjamin coloca no centro de sua filosofia da história o conceito de catástrofe. Segundo Ele, a catástrofe seria o progresso e o progresso seria a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história e as promessas libertárias (rupturas) que foram sufocadas por esse continuum (HABERMAS, 1981). Já outras releituras do fenômeno estético psicodelia apenas absorvem acriticamente seus procedimentos poéticos, enfatizando dessa forma somente o clima “vintage” do Movimento. Trata-se de uma farsa, já que a histórica não se repete, como dizia Marx. O movimento psicodélico não tinha a si mesmo como referência para se repetir, tratou-se, ao contrário, de um gesto absolutamente inovador na história.

No Brasil cabe destacar alguns eventos que fizeram florescer o Movimento Hippie e Flower Power. A encenação do musical Hair, cantando todo em português, em 1969/70. O filme “Geração Bendita” de Carlos Bini que mostrou a comunidade Hippie friburguense Quiabo’s. Os shows de rock no teatro Aquarius em São Paulo e a “Tenda do Calvário”, porão alugado a Igreja de mesmo nome, na Praça Benedito Calixto, também em São Paulo. Os espetáculos de rock ao ar livre, em especial, o realizado no Parque do Ibirapuera em meados dos anos 70. Cito esses por afinidades, mas, sem dúvida existem muitos outros que devem ser lembrados. Devemos assinalar também que a arte psicodélica esteve muito presente no Movimento Tropicalista, desde os trabalhos de Helio Oiticica, até a música e design gráfico de todo o Tropicalismo.

Harmony and understanding
Sympathy and trust abounding
No more falsehoods or derisions
Golden living dreams of visions
Mystic crystal revelation
And the mind’s true liberation
Aquarius! Aquarius!

Hair – The Dawning Of The Age Of Aquarius

Prof. Dr. Eduardo C Braga
Fevereiro de 2014

Gene Anthony, Hippies on the Corner of Haight and Ashbury, 1967, Inkjet print (reprint) , 35.6 x 27.9 cm, Collection of Wolfgang's Vault, San Francisco, © Wolfgang's Vault.
Gene Anthony, Hippies on the Corner of Haight and Ashbury, 1967, Inkjet print (reprint) , 35.6 x 27.9 cm, Collection of Wolfgang’s Vault, San Francisco, © Wolfgang’s Vault.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albert Alotta, Peacemeal, 1967, Film still, Courtesy the artist and the film-makers cooperative.
Albert Alotta, Peacemeal, 1967, Film still, Courtesy the artist and the film-makers cooperative.

 

 

 

 

 

 

 

 

Verner Panton, Phantasy Landscape, 1970, © Panton Design, Basel.
Verner Panton, Phantasy Landscape, 1970, © Panton Design, Basel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Divulgação da montagem de
Divulgação da montagem de “Hair” no Brasil, 1970.

Referências

BENJAMIN. W. “Thèses sur la Philosophie de l’Histoire”. In: Poésie et révolution. Trad. Maurice de Gandillac. Paris: Lettres Nouvelles, 1971.

BINI, Carlos & KOHLER, Carl & DOADY, Carlos. Geração Bendita. [Filme]. Direção de Carlos Bini, Produção de Carl Kohler e Carlos Doady. Produção Independente, Nova Friburgo, RJ, 1971.

BURROUGHS, William. O almoço nu. São Paulo: Brasiliense, 1992.

CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: A juventude em questão. São Paulo: SENAC/São Paulo, 2001.

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L & PM, 1984.

Habermas, J. “L’actualité de W. Benjamin. La critique: Prise de Conscience ou Préservation”. In: Revue d’Esthétique nº 1, 1981.

LEARY, Timothy. Flashbacks. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MACIEL, Luís Carlos. Os anos 60. Porto Alegre: L & PM, 1997.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

NEWFIELD, Jack. Una minoria profetica: La nueva izquierda norteamericana. Barcelona: Ediciones Martinez Roca S/A, 1969.

PATRIOTA, Rosangela. “Jim Morrison: O poeta-xamã dos anos 60”. In: Revista Cultura Vozes. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes. N. 2, Março/Abril, 1997, p. 81-
95.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1992.

ROSZAK, Theodore. A contracultura. Petrópolis: Vozes, 1972.

Sculatti, Gene. San Francisco nights: the psychedelic music trip, 1965-1968. New York : St Martin’s Press, c1985.

Selvin, Joel. Summer of love: the inside story of LSD, rock & roll, free love, and high times in the wild West / Joel Selvin. New York, N.Y., U.S.A. : Dutton, c1994.

Tomlinson, Sally Anne. San Francisco rock posters, 1965 to 1971. Dissertation by Sally Anne Tomlinson, 1991. Location: California State Library, Main Lib NC1849.R6 T66 1991 California.

The San Francisco oracle, facsimile edition : the psychedelic newspaper of the Haight-Ashbury, 1966-1968 / edited by Allen Cohen. 1st ed. Berkeley, CA : Regent Press, 1991.

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3 Replies to ““Summer of Love”. Os inícios da Arte Psicodélica.”

  1. Muito obrigado Maria Tereza Penna pela gentis palavras. Mantenho em meu Bloroll o site “mineridades em pencas” e recomendo esse espaço, mantido por “blogueira” progressista.

  2. Esse trabalho é mais que um relato. É um resgate da arte no seu tempo e no seu contexto. Inspirador, esclarecedor e rico em conteudo. Obrigada amigo.

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