Arte e autonomia: a contribuição decisiva da modernidade

O conceito de gênio foi inicialmente formulado pelo Iluminismo e desenvolvido posteriormente no Idealismo alemão. Sua função era explicar a natureza diferencial da arte quando comparada ao mundo ou natureza. A partir de suas origens e desenvolvimentos, este conceito tomou dois rumos contraditórios. De um lado postulou-se um irracionalismo vinculado ao poder que o artista-gênio possui. De outro lado, fortaleceu-se o conceito de uma arte autônoma, ou seja, possuidora de suas próprias regras quando comparada com os fenômenos da natureza e mesmo com as necessidades da sociedade. Para a modernidade, a defesa da autonomia da obra de arte engendrava a possibilidade de uma unidade entre o subjetivo e o objetivo, ou seja, a defesa de um juízo estético que não representava simplesmente uma questão de gosto pessoal. A autonomia da arte implica necessariamente que existem critérios para se julgar a qualidade e importância das obras de arte. Assim, a distinção entre gêneros ou repertórios “superiores” e “inferiores” é possível graças aos critérios estabelecidos pela autonomia da arte, os quais possibilitam os meios avaliativos de sua própria atividade.

Já podemos ver em Kant e Hegel um pensamento contrário ao irracionalismo do subjetivismo absoluto. Kant formulou que o sentimento agradável do belo não possui uma base conceitual, ou seja, não é possível atingi-lo e discuti-lo por meio de argumentos lógicos. Porém isso não leva ao irracionalismo na medida em que para Kant esse sentimento estético possui a propriedade de ser compartilhado e validado por meio de um grupo de pessoas que sintam as mesmas certezas acerca da beleza. Portanto, “não-conceitual” não significa que o sentimento estético passe a ser propriedade de um juízo totalmente subjetivo. Em Kant, a subjetividade do sentimento estético é mediada pela comunicabilidade e reconhecimento desse sentimento por outros membros da mesma comunidade.

Hegel inseriu a arte como parte orgânica e importante de seu sistema filosófico. Ele combateu as tendências românticas que filiavam a arte como um produto de uma imaginação intensa, anárquica e indisciplinada da intuição e dos sentidos. Imaginação que não poderia nunca ser enquadrada por um pensamento abstrato e racional. Contra os inimigos da razão, Hegel pensa a arte como algo que possui a verdade e, por isso mesmo, passível de ser pensada com a Razão. Hegel define a arte como manifestação sensível do Espírito. Esse aparecer do Espírito de forma sensível não pode ser confundido como uma aparição qualquer. Para a Hegel, a arte é uma representação que nos conduz a uma realidade diferente de nosso cotidiano. Neste, a aparência esconde uma essência. Já na arte, a aparência desvela uma essência que lhe é intrínseca. Assim a arte nos fornece uma realidade autônoma mais alta e verídica.

Na tradição kantiana e principalmente hegeliana, a arte é uma atividade que preserva sua autonomia, sendo concebida como parte de um sistema de pensamento que estabelece critérios para o julgamento estético.

A autonomia da arte é o que a preserva do relativismo subjetivista exacerbado que a conduz para um vale-tudo inviabilizador de qualquer julgamento que a qualifique. Esse puro subjetivismo é um verdadeiro “assalto à razão” que impossibilita qualquer tipo de acordo comum. Ele está fortemente presente nas tendências pós-modernas que negam o modernismo e sua busca de uma síntese entre subjetividade e objetividade.

Assim, torna-se vital a defesa da forma do objeto artístico e sua autonomia, impossibilitando dessa maneira a diluição da autonomia da arte. Essa autonomia não exclui a possibilidade de se encontrar estruturas homólogas entre a arte e a sociedade; já que a arte é uma atividade que parte da vida cotidiana para, em seguida, a ela retornar, produzindo nesse movimento circular e reiterativo uma elevação na consciência sensível dos homens, ou seja, uma verdadeira catarse. Essa elevação não é um devaneio ou um tipo de fuga. Ela se contrapõe a vivência fragmentária do cotidiano enriquecendo o homem que, por meio da arte, faz a passagem do que é concreto para o que é abstrato e vice-versa. A arte, portanto, possibilita a transcendência da fragmentação, engendrada pelas relações meramente mercantis, produzindo um contínuo enriquecimento espiritual (da consciência) da humanidade.

A arte, então, figura, com seus próprios meios, a realidade que se apresenta sob a forma caótica da vida cotidiana. Essa figuração se apresenta de modo homogêneo confrontando-se com a fragmentação da experiência cotidiana e possibilitando, assim, uma ruptura perceptiva marcada pela heterogeneidade e superficialidade dos fenômenos do dia-a-dia que ocultam a verdadeira essência. Trata-se de uma re-apresentação do mundo como uma segunda imediaticidade, por isso a necessária autonomia da arte em relação a esse mundo. O caráter fragmentado da realidade reaparece, por meio da forma artística, transfigurado como uma nova imediaticidade, ou seja, uma unidade sensível de essência e aparência. A alienação, o estranhamento, a indiferença e agressividade do mundo são transformadas na arte num para-si, ou seja, um mundo em conformidade com o humano.

Isso é possível graças ao trabalho do artista, seu talento ou genialidade, que concentrou todas as determinações da realidade em uma totalidade, em um mundo próprio. Ocorre então no receptor, ou fruidor, da arte uma suspensão de sua cotidianidade singular, elevando-o da subjetividade para um campo objetivo, ou seja, do singular para o universal. Esse movimento próprio da arte, ou seja, o movimento de ruptura e retorno ao cotidiano somente pode ser experienciado na medida em que a arte tenha um alto grau de autonomia em relação a esse cotidiano, não sendo determinada, nem direcionada por necessidades cotidianas e subjetivas. A autonomia da arte exige que ela pertença ao reino da liberdade e não da necessidade. Enfim, a arte não pode ser totalmente diluída na vida cotidiana. Sua autonomia é condição de seu caráter negativo ou elevador em relação à fragmentação e alienação das vivências cotidianas contemporâneas. Assim, contrário às posturas pós-modernas que transformam a arte numa decoração social, a modernidade, com a autonomia da arte, a torna absolutamente necessária para o processo de superação da alienação, transformando o mundo num lugar habitável para o homem e todas as formas de vida.

Prof. Dr. Eduardo Cardoso Braga
São Paulo 08 de agosto de 2011

Print Friendly, PDF & Email

3 Replies to “Arte e autonomia: a contribuição decisiva da modernidade”

  1. Obrigado, lj, pelas palavras.

    De fato, você tem razão, a afirmação possui um tom de exagero e grandiosidade. Considera-a como uma manifestação contrária e crítica em relação à pequenez e humildade de certas teorias contemporâneas e pós-modernas da arte, as quais privilegiam a ironia como poética e a decoração como artifício da boa vida. Se considerarmos a arte como uma possibilidade de construção de formas de relação com o mundo, como a recuperação da harmonia perdida, o comportamento de seu cão torna-se uma referência!

    Abraços.

  2. “[…] transformando o mundo num lugar habitável para o homem e todas as formas de vida.” (fim do texto) – Não é um tremendo exagero esta afirmação? Que interessa à vida em geral a arte? O meu cão quer é comer, cheirar, urinar e uma cadela. Isso para ele é que é arte. De qualquer maneira, obrigado pelo texto maravilhoso!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *