A arte feminista e alegórica de Gustave Courbet e Carolee Schneemann

Courbet - "The Origen of the World" - 1866
Gustave Courbet – “The Origin of the World” (1866)

Quando tomamos contato pela primeira vez com a pintura de Courbet reproduzida acima, interpretamos como uma imagem de conotações eróticas e talvez mesmo pornográficas. A fatura realista da pintura e seu rico detalhamento referencia a presença de uma realidade vista e testemunhada como fato. Porém, uma leitura como essa é apressada demais. A correta interpretação da arte demanda sempre um tempo e uma forma: o diálogo com a obra. Por isso Paul Klee dizia: Quer compreender uma obra? Pegue uma cadeira.

A leitura desta obra como pura e simplesmente erótica ou “picante”, com perspectiva um tanto quanto machista, está em franca oposição com a fortíssima tradição aristotélica na qual a arte é compreendida como valor e portanto referindo-se ao que “deveria ser” e não exatamente ao que é. Essa tradição é, infelizmente, por vezes desprezada por historiadores apressados, os quais cometem frequentemente a “ilusão retrospectiva”, ou seja, acreditam que seus próprios conceitos podem ser projetados por toda a história. O puro realismo na arte é uma ilusão. Aristóteles, em sua obra “Poética”, diferencia o historiador, que trata do que é, e o artista, que trata do que deveria ser; assinalando a superioridade intelectual daquele que busca o mundo tal como deveria ser, portanto na esfera teórica e metafísica. Essa é a primeira e fundamental distinção entre o literário/artístico e o historiográfico. Assim, Poesia é imitação das ações humanas e História é a narração dos acontecimentos e fatos que realmente ocorreram. A clássica distinção entre Literatura e História, fundamentada nas convenções de ficcionalidade e veracidade, é derivada da concepção aristotélica de que a Poesia é imitação das ações humanas (“dever-ser”) e a História é a narração dos acontecimentos realmente ocorridos. Temos aqui, já formuladas, as estruturas das modernas convenções da ficcionalidade e da veracidade, conceitos chaves nas definições das duas modalidades discursivas. É a partir dessa distinção que podemos compreender o movimento contemporâneo de crítica da história e da ficção, o qual busca uma aproximação entre a história e a ficção, ou melhor, uma aproximação da historiografia com a poética. Uma boa parte dos historiadores recentes advogam uma filosofia da história que interpreta a historiografia como também pertencente à dimensão literária, portanto como comportando algo de ficção. Assim, hoje, em vez de buscar a diferença como Aristóteles, busca-se as semelhanças. Para Aristóteles, essa diferença não é somente de ordem metafísica, mas também epistemológica. A diferença fundamental que a Poética coloca entre a História e a Poesia configura-se no tipo de conhecimento que cada um dos gêneros desenvolve: (1) a imitação poética ou (2) a narração histórica. Imitação significando o que poderia ter sido (dever-ser), e narração histórica o que de fato foi.

O conhecimento proporcionado pela História é inferior ao dado pela Poesia, pois sua preocupação é para com o que aconteceu, para o particular que é um âmbito menor do que poderia acontecer, do universal. Para Aristóteles o conhecimento verdadeiro e certo visa sempre ao universal. Somente o conhecimento do universal é racional, a poesia é algo de mais filosófico, mais sério, mais profundo do que a história.

A dimensão formal (causa formal) da Poesia/Arte – a fabulação trama dos fatos – garante a estruturação das ações de modo perfeitamente orgânico, unitário e belo (“Pois o belo se encontra na extensão e na ordem, …” Poética, VII, 1450 b 35). No belo, cada uma das partes tem seu sentido em função do todo que compõem, de tal maneira que resulta no conhecimento e no prazer (causa final). A imitação poética do mundo exige então uma certa transfiguração desse um mundo em uma totalidade coerente e orgânica.

“Também é claro, a partir do que foi dito, que a função do poeta não é dizer aquilo que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, aquilo que é possível segundo o provável ou o necessário. Pois não diferem o historiador e o poeta por fazer uso, ou não, da metrificação (seria o caso de metrificar os relatos de Heródoto; nem por isso deixariam de ser, com ou sem metro, algum tipo de história), mas diferem por isto, por dizer, um, o que aconteceu, outro, o que poderia acontecer” (Poética., IX, 1451 b).

Na Poética aristotélica, Poesia é imitação (mimese), que se caracteriza por ser uma operação de representação e transfiguração da natureza (physis). O homem na natureza é e está em ação, e a imitação dessa ação não acontece em termos de simples cópia ou transcrição, mas como ampliação e universalização das suas possibilidades. O poeta imita ações e esta imitação é criação, pois vai além do que é simplesmente dado, derivando possibilidades e virtualidades (poiesis). O poeta é um fabulador e deve compor e recompor os mitos tradicionais de forma a atingir seu próprio fim, ou seja, criar e agenciar os elementos escolhidos segundo uma ordem que conduza a um todo significativo. A atividade do poeta é então totalizar ou universalizar aquilo que é singular. Dar sentido ao fragmento remetendo-o a uma totalidade significativa.
Voltemos então a Courbet e iniciamos, com esses novos dados, o diálogo com a obra. Trata-se da apresentação de um orgão sexual feminino. Não é uma experiência pornográfica, apesar da representação acurada e em detalhes. Estamos diante de uma sensória confrontação e precisamos interrogar sobre seus significados. O que então significa essa pintura? Essa confrontação, própria do círculo hermenêutico, nos conduz para a própria experiência da arte, na qual sensorialidade e repertório são mobilizados para produzir a necessidade de uma significação. O título da obra fornece a chave para sua correta interpretação. Palavra e imagem, por vezes, estabelecem cumplicidades e mútuas elucidações ou ilustrações. Uma ilumina a outra. Especialmente a partir do Renascimento. O título de uma obra pode transformá-la em verdadeira alegoria, no sentido benjaminiano. Ou seja, uma determinada particularidade, um determinado ponto de vista, um fragmento, tornam-se uma expressão do todo. A mônada particular é o todo expresso sob um ponto de vista. O título da obra de Courbet é “A origem do Mundo“. Então uma determinada mulher, com seu particular orgão sexual, torna-se uma alegoria da criação do mundo, dos poderes da Grande Mãe, a qual é a fonte de todos nós. A pintura expressa então a alegoria da criação, do próprio poder da arte, do artista e do gesto cultural que cria um sentido a partir de alguma coisa. O poder da nomeação. Dar nomes significa transformar o mundo, recriá-lo, transfigurá-lo em puro sentido ou significado. Não podemos deixar de notar que Courbet pensa na mulher com seu órgão sexual como a portadora desse poder de criar e nomear. Nesse sentido, podemos, seguindo uma pista de Lehrer (2012), associar esse trabalho de Courbet com os trabalhos performáticos de Carolee Schneemann, que exploram questões femininas, abordando, sobretudo, a dimensão criadora da mulher. Seu trabalho “Interior Scroll” nos mostra as forças criadoras da mulher, simbolizado pelo ato de gerar; ato materializado na forma sensível de seu órgão sexual.
Trata-se então de estabelecer os vínculos perdidos entre a biologia e o sagrado. Em nossa sociedade esse elo está sempre escondido na objetivação de velar o biológico para fetichizar a mercadoria que torna-se naturalizada. Como exemplo basta analisar os desenhos animados e bandas desenhadas infantis. As relações sociais são sempre exibidas na forma de tios e sobrinhos. Quase não existe a relação biológica do pai e da mãe. Ao mesmo tempo, os objetos industriais são como que colhidos em árvores, usados e descartados sem a menor vinculação ao seu sistema produtivo. Um personagem precisa de um helicóptero e imediatamente ele aparece à mão para ser usado. E após o uso é misteriosamente descartado. Tudo se comporta como se fosse produtos orgânicos, da natureza e colhidos em árvores.
Os trabalhos de Courbet e Schneemann têm a força de desvelar essa estranha situação devolvendo a importância para o biológico, para a mulher e sua especificidade. Também esse biológico não é apresentado como puro fato bruto, mas vinculado ao processo cultural e a uma certa sacralização que celebra o ato criativo, desvelando o ser que se esconde na era da técnica. O mundo e tudo o que nele habita torna-se então fruto de um processo criativo, de um sistema ou processo de produção.

Carolee Schneemann - Interior Scroll
Carolee Schneemann – “Interior Scroll” – Performance – 1975

 

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Trad., Pref., Introd., Com., Apend. de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
COSTA, Lígia Militz da. A Poética de Aristóteles: Mímese e Verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
GAZONI, M. F. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. 2006. 132 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
GOLDSCHMIDT, Victor. Temps physique et temps tragique chez Aristote. Paris: J. Vrin, 1982.
LEHRER, Keith. Art, Self and Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 2012.
NAVAL DURÁN, Concepción. Educación, Retórica y Poética: tratado de la educación en Aristóteles. Pamplona: Ed. da Universidad de Navarra, 1992.

Dr. Eduardo Cardoso Braga
2014

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