A Adoração dos Reis Magos segundo Giotto

A Adoração dos Magos
A Adoração dos Magos

A Adoração dos magos de Giotto, 1304-1306.
Capela Scrovegni, Pádua, Itália.

Enquanto os outros monoteísmos e a Reforma Protestante excluíram as imagens dos cultos, a Igreja Católica manteve a representação pictórica dando a ela um uso didático. Esse uso da imagem sempre foi muito questionado ao longo da história por diversas correntes internas da Igreja. Entretanto, o argumento da força didática da imagem sempre acabou triunfando. De fato, diante de uma população basicamente analfabeta as imagens tornam-se instrumento de ensinamento, pela igreja, a qual recorria a artistas cujas obras ilustraram e aproximaram a vida e obra de santos, da realidade quotidiana do homem comum. Devido ao uso de grandes artistas para a construção da imagética cristã, a produção iconográfica da Igreja ganha a dimensão estético-artística indo bem além do mero didatismo. A construção da comunicação visual ocidental, bem como de suas bases estéticas podem ter sua arqueologia encontrada no movimento renascentista, especialmente em sua dimensão religiosa.
Giotto é um artista desse porte. Sua simplificação da imagem, calcada em um desenho claro e preciso, suas cores claras, limpas e brilhantes fazem suas imagens possuírem um impacto visual e uma dimensão de monumentalidade própria para expressar o conteúdo didático pretendido pela igreja. Vasari em sua obra “Vidas dos mais importantes artistas do renascimento italiano“, escrita em 1550, considera Giotto como a própria origem do movimento, o qual terá o seu ápice na geração de Vasari. Essa geração desenvolve uma consciência de ruptura com a cultura imediatamente passada se diferenciando do fluxo temporal indeterminado. Trata-se de uma ruptura com o Gótico e um retomar, segundo uma leitura precisa, de um passado clássico que foi esquecido.
Na pintura “A Adoração dos magos de Giotto”, cuja execução se deu entre 1304 e 1306, na Capela Scrovegni em Pádua, Itália, Giotto mostra toda a maestria de seu estilo monumental, claro e de impacto perceptivo. A cena desvela uma Epiphania, ou seja uma manifestação ou fenômeno miraculoso, o qual expressa um momento privilegiado de revelação que ilumina e torna significativo a vida de um ou vários personagens. Assim, o observador da cena torna-se uma testemunha do fato, mantendo a fé cristã e a crença na veracidade das narrativas dos acontecimentos bíblicos.
A pintura de Giotto que estamos analisando faz parte de um conjunto de imagens encomendadas e pagas por Enrico Scrovegni, rico comerciante. A usura era condenada pela Igreja e uma forma de purgação desse pecado era realizar doações para a Igreja em forma de obras de arte e arquitetura, contribuindo assim para a glorificação de Deus e evangelização dos homens. O pai de Enrico, Rinaldo Scrovegni é personagem da Divina Comédia de Dante, o qual se encontra no sétimo círculo do inferno; local onde estão sendo castigados os responsáveis pelo pecado da usura. Então é óbvio que Enrico queira se purgar dedicando parte de sua fortuna para a construção de belas obras de arte destinadas às igrejas, purificando assim tanto a si mesmo como a seu pai.
O tema da adoração dos reis magos está vinculado ao tema principal da natividade que já tinha sido recuperado, introduzindo-se no imaginário popular graças ao trabalho de São Francisco e sua difusão dos presépios e cenas de natividade.
Na Bíblia, a única referência à natividade e aos reis magos encontra-se no evangelho de Mateus. É exatamente esse evangelho que proporciona a Giotto os elementos imagéticos para compor a cena da Adoração dos Reis Magos, os quais são representados como homens ricos e poderosos de outras terras e religiões, mas que reconhecem no Menino Jesus o Messias. Eles então rendem homenagem e trazem oferendas ao Messias, o qual foi profetizado por uma estrela. Segundo Mateus: “prostrando-se o adoraram”. Giotto os faz mesmo beijar os pés do Menino Jesus. Nessa pintura, podemos ver uma recorrência constante nas imagens de Giotto: a presença do rochedo, o qual aparece em muitas pinturas da época. Trata-se de uma referência ao Salmo de Davi (18.2) no qual se diz: “o Senhor é o meu rochedo”. A cobertura de madeira, muito estilizada, é um ícone que referencia o presépio, local da natividade.
Além da iconografia derivada diretamente do Evangelho de Mateus existem pequenos elementos que provavelmente estão baseados no livro de Pedro, o qual foi retirado da Bíblia e pertence ao que se convencionou chamar de “Novo Testamento Apócrifo”.
Evidentemente que Giotto construía as suas composições com a supervisão dos doutores da Igreja e a inclusão de elementos de evangelhos apócrifos não pode ser compreendido como forma de contestação. A razão por Giotto usar esses elementos visuais, que não estão descritos em Mateus, se deve muito mais à já presença desses elementos no imaginário popular do que qualquer pretensa recuperação de evangelhos apócrifos. Para o efeito de “testemunha da verdade” acontecer é preciso que as espectativas imaginárias do povo sejam plenamente satisfeitas, somando-se um impacto visual cuja criação Giotto é um grande mestre. Os principais elementos que não estão em Mateus são a rocha, cujo sentido já foi explicado, o anjo e a estrela ou cometa. Anjo e estrela estão misturados e ambos têm o mesmo significado com significantes diferentes. Trata-se da referência de um anjo sob a forma de uma estrela. A estrela que guia é o anjo que guia.
A Adoração dos Reis Magos é um tema derivado da Natividade, mas possui a sua beleza iconográfica, além de uma riqueza de imagens criadas por grandes artistas.
Independente da fé, ou da dimensão ideológica educativa, podemos sem dúvida fruir a beleza estética da pintura de Giotto. Sua ênfase no desenho claro, limpo e direto e na monumentalidade do tratamento gráfico desvela uma arqueologia da comunicação visual contemporânea. Existe uma grande beleza no uso sutil das cores que representam com muita sensibilidade a santidade imaculada dos personagens da cena. O panejamento dos mantos refere-se explicitamente às esculturas clássicas da Grécia Antiga e toda a cena é banhada de uma elegância transcendental sem ostentar qualquer luxo excessivo. A beleza dessa pintura abre o meu coração para a festa, festa de reis.

Prof. Eduardo C Braga
06/01/2013 – Folia de Reis

Referências

BUENO, Cintia M. F. R. “Seguindo a estrela: Mateus e o Apócrifo de Pedro na Epyphania de Giotto em Pádua”. In: ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.

HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da Arte Cristã. São Paulo: Paulus, 1994.

PANOFSKY, Erwin. O significado nas artes visuais. Trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 1979. (coleção debates)

PANOFSKY, Erwin, A Perspectiva como forma simbólica, Lisboa, Edições 70, 1993.

VASARI, Giorgio, 1511-1574. Lives of the most eminent painters, sculptors & architects, by Giorgio Vasari: newly tr. by Gaston du C. de Vere. With five hundred illustraiions, (London, Macmillan and co., ld. & The Medici society, ld., 1912-15.)

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3 Replies to “A Adoração dos Reis Magos segundo Giotto”

  1. Desculpe, não vou “jogar fora”, porque considero todos os comentários sérios muito importantes. A intenção foi escrever um texto sobre estética e não sobre religiosidade. Tenho perfeita consciência que separar esses dois campos de estudo, no contexto histórico estudado, seja muito difícil. Porém, considero mais do que possível, necessário. Obrigado pelo comentário.

  2. Leia e jogue fora:

    As palavras que faltam são: respeito, adoração, Giotto, religiosidade. Esse texto não exalam esses significados

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