Cildo Meireles, arte conceitual e política: um Duchamp reverso

No final dos anos 60 e inícios dos 70, no Brasil, uma série de artistas trabalharam no sentido de unir as práticas e estratégias da arte conceitual com um ativismo político. Não se tratava de representar processos revolucionários com imagens de guerrilheiros lutando triunfantes ou operários desmilinguidos pelo fome ou fortalecidos como Hércules pelo processo revolucionário. Muito pelo contrário e antes de tudo, tratava-se de questionar a concepção de arte como representação, considerada como canônica para o capital e sua burguesia. Busca-se um isomorfismo estrutural entre o processo revolucionário da guerrilha e as práticas e linguagens artísticas. Ou seja, como realizar um processo revolucionário-guerrilheiro no universo estético, cultural e artístico, respeitando sua autonomia e em seus próprios termos? É exatamente esse o caso de uma série de trabalhos de Cildo Meireles chamados de “Inserções em circuitos ideológicos”. O objetivo do trabalho era criar um sistema de circulação e troca de informação que não dependia de nenhuma espécie de controle centralizado. As séries de inserções transmitiriam informações por uma variedade de circuitos alternativos, como garrafas de Coca-Cola, pentes para cabelos Black-Power, cédulas de dinheiro, etc.
O contexto histórico no qual a obra circula e lhe dá sentido é o Brasil dominado por uma ditadura militar que violou o regime constitucional de 1964 e recrudesceu no final dos anos 60. O regime ditatorial, imediatamente, impôs uma repressão dramática sobre as expressões artísticas, submetendo-as a uma censura que filtrava todo tipo de informação. As séries de inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles procuraram explorar alternativas comunicacionais e artísticas para executar uma verdadeira guerrilha contra o sistema repressor da ditadura militar. Entre as séries, cabe destacar as informações impressas nas garrafas de Coca-Cola. Este trabalho conceitual era um projeto que se utilizava de uma mídia, garrafa de refrigerante, para executar uma crítica revolucionária por meio de mensagens anti-imperialista para um público potencialmente imenso e, ao mesmo tempo, escapava do vigilante monitoramento executado pela ditadura em todos os canais convencionais de comunicação.

A inserção do tipo Coca-Cola consistia em imprimir mensagens e opiniões críticas sobre a política brasileira, sobre o imperialismo e intervencionismo norte-americano. Essas mensagens eram impressas em cor branca, que as tornava quase invisíveis (escondidas) quando as garrafas estavam vazias. Logo que eram cheias do xarope refrigerante as mensagens tornavam-se claramente visíveis. Lembramos que no tempo em questão, final dos 60 e inícios dos 70, os refrigerantes eram vendidos somente em garrafas, sendo necessário a troca do casco (garrafa) vazio na compra de um cheio. O circuito informacional torna-se perfeito, então. No próprio signo maior do imperialismo são veiculadas mensagens revolucionárias e críticas. O trabalho consiste não somente nas mensagens de Cildo Meireles, mas num convite para todos efetuarem e trocarem essas mensagens críticas. É um convite para uma determinada ação, o que em termos de arte conceitual ficou conhecido como command-piece. O importante neste trabalho de arte é a ideia projetada e o processo que ela desencadeia. Todos tornam-se artistas. Essa era a grande utopia de Joseph Beuys e de boa parte do modernismo, sendo uma questão fundamental para certas linhas da arte conceitual.
Importante notar que o trabalho de Cildo Meireles é um Duchamp reverso ou às avessas. Os ready-mades duchampianos eram discretos objetos do cotidiano inseridos no circuito da arte, funcionando como desveladores do sistema político da arte e uma completa dessublimação da mesma. A arte se desfaz no cotidiano, perdendo toda a sua áurea. A poética do ready-made foi apropriada pela Pop-Art e pelo Minimalismo mitigando em grande parte seu poder crítico.
Já as Inserções de Cildo Meireles são a arte e seu poder transformador da realidade. Ela se insere no cotidiano como arte que é ideia, procurando transformar esse mesmo cotidiano. Toda a força de uma intencionalidade (do artista) resgata o poder romântico da crença na arte como possibilidade de regeneração e devolução de uma vida em harmonia social e com a natureza. Em vez de inserir um objeto comum no espaço institucional da arte, como faz Duchamp, o trabalho de Cildo Meireles devolve as garrafas de Coca-Cola para o seu sistema original de circulação, embora com sua forma levemente alterada. A arte não se dilui na vida, mas dialoga com esta, a critica e procura transformá-la, funcionando como um negativo da situação atual.
As inserções de Cildo Meireles devolvem a discussão sobre as relações entre arte e vida (realidade), indo além de concepções representancionais ou teleologias que simplesmente diluem a arte na vida.

Inserção em circuitos ideológicos
Inserção em circuitos ideológicos
Inserção em circuitos ideológicos
Inserção em circuitos ideológicos
Inserção em circuitos ideológicos
Inserção em circuitos ideológicos

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Prof. Dr. Eduardo Cardoso Braga
São Paulo, outubro de 2015

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2 Replies to “Cildo Meireles, arte conceitual e política: um Duchamp reverso”

  1. Não, nem tudo pode ser considerado arte. Responder a questão o que é arte é muito complexo e impossível no espaço de um blog. Precisa-se, pelo menos de um livro. Porém uma coisa essencial para algo se tornar arte é a intencionalidade. Junto com ela deve haver a aceitação da comunidade social que estuda, aprecia e discute a arte. Obrigado.

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