Ambiente, arquitetura, arte e cotidianidade

Nas megalópoles contemporâneas, a maioria, os 99%, vivem apinhados em um ambiente feio, de espaços reduzidíssimos, trânsito congestionado, rodeados de poluição sonora, visual e material. Ambientes claramente contaminados. Porém, aos fins de semana, alguns desses habitantes podem freqüentar um museu, assistir a algum espetáculo ou forma de arte que lhes tragam alguma sensação de beleza. Outros, ao contrário, procuram espetáculos que intensificam essa sensação degradante e contaminada das grandes cidades; aumentando em muito a violência e os conflitos nas relações pessoais e ambientais. De qualquer forma, a beleza quando aparece nessas circunstâncias, aparece como algo descolado da vida, como um completamente outro. Outro mundo que se contrapõe à fealdade da cotidianidade. Uma ruptura inconciliável se estabelece então entre vida e arte. A síntese não é mais possível. Assim, a beleza torna-se um sonho, distante da vida, inalcançável. Uma ficção alijada da realidade.
Nas megalópoles contemporâneas, as pessoas são empurradas para a sua subjetividade, último reduto de salvação. Porém essa mesma subjetividade é sempre invadida pelo outro. É comum vermos as pessoas reclamando de seus vizinhos com suas “músicas altas” de gosto musical duvidoso. Ou conflito de toda espécie pelos desrespeitos às regras que deveriam presidir o espaço comum. O problema é que o movimento que empurra para a subjetividade máxima é o mesmo movimento que rompe com as regras e as leis do comum.
O curioso é ser essa problemática tão pouco discutida nas pesquisas, publicações e cursos superiores de arquitetura e design, disciplinas e profissões exatamente responsáveis pelos projetos que mediam a relação do homem com o ambiente e a cotidianidade. Talvez essa situação seja o próprio reflexo da alienação geral conduzida pelo completo distanciamento da beleza com a cotidianidade.
A situação atual é um produto da própria história, portanto pode ser um dia alterada. De fato, nem sempre foi assim. Na Grécia Antiga, o espaço dos templos, a música, a poesia épica e a tragédia eram propriedades de todos os cidadãos e faziam parte de seu cotidiano. Os edifícios harmoniosos da Atenas clássica são exemplos de beleza formal mais elevados da história da arquitetura. São simetrias (mesmo metro, módulo) de grande harmonia entre o todo e as partes, reflexo das expressões lineares da geometria euclidiana. Trata-se do espaço e do ambiente da própria democracia ateniense e seu espírito público. Eram edifícios públicos e não residências privadas. É claro, que tratava-se de um sistema de produção escravocrata, portanto o escravo estava alijado da política, que era a mediação com a cotidianidade.
A Revolução Russa de 1917 foi um dos principais momentos onde a discussão entre arte, beleza e cotidianidade tornou-se obrigação de ofício. Numerosos grupos de arte de vanguarda, nesse período, propunham mergulhar a arte na vida e, com esse gesto, transformar tanto a vida como a arte. A reação estalinista acabou com esse momento histórico. Um dos mais criativos da história da arte. Na Revolução Espanhola de 1931-37, a arte também alcançou as ruas e o cotidiano de todas as pessoas. Por exemplo, a poesia de Lorca, Alberti e Miguel Hernández era comumente declamada e ouvida nas ruas tomadas pela população em sua luta e defesa da igualdade e liberdade.
Também o ideal da grande unidade de uma arte que encurta a distância entre beleza e vida foi o programa pedagógico da Bauhaus, que permaneceu viva nos seus desmembramentos de Ulm e Chicago, após seu fechamento pelos nazistas.
É urgente, hoje, a criação e o projeto de espaços e ambientes que favoreçam a expressão do comum, nos quais as pessoas se reconheçam como seres humanos, capazes de controlar seus destinos, e não simples subjetividades em conflito com o outro e o ambiente. O sentimento de humanidade engendra a dignidade e um sentido de respeito para consigo e seu semelhante, bem como para toda espécie de vida. São as condições materiais que determinam a consciência e não o contrário como querem os idealistas e ideólogos. Uma sociedade igualitária, com respeito às liberdades fundamentais, com alto nível de tecnologia e cultura transformaria a maneira com a qual as pessoas interpretam a realidade e se auto-representam.
Hoje muita gente vive em verdadeiras “caixas de sapato”. Espaços que só podem gerar condições materiais portadoras de violência e alienação. Quando a própria vida esta despojada de toda a humanidade e se desnaturaliza, o homem, como parte desse ambiente, também se comporta de forma antinatural e inumana.

Paternon, Grécia

Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.
BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
COSTA, Lucio. Lucio Costa: Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.
GOMBRICH, Ernest Hans. A História da Arte. 16 ed. Rio de Janeiro: LTC. 1999.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Vol. I e II. 3 ed. São Paulo:  Mestre Jou, 1982.
VITRUVIO. Da Arquitetura. São Paulo: Hucitec, 2002.

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5 Replies to “Ambiente, arquitetura, arte e cotidianidade”

  1. Matheus, muito obrigado pelos comentários. Concordo inteiramente com você. A questão da inclusão é fundamental. No horizonte, ela deve apontar para mais do que uma simples melhoria das condições de vida. Ela deve abrir a possibilidade de acesso e compreensão dos grandes valores da humanidade, que não são necessariamente “burgueses”, embora seja essa classe que, nas condições presentes, pode usufruir deles. Isso implica em questionar uma série de chavões praticados em nome da “melhoria das condições de vida”. Por exemplo, na educação o binômio escola técnica para pobres, e superior para ricos. Ou, cultura de massas para os pobres, e erudita (de repertório) para ricos. Sempre devemos nos preocupar com a questão do acesso à fruição da Beleza nessa inclusão. É disso que se trata meu texto, de forma implícita, talvez não explícita. Naturalmente que a questão da Beleza demanda uma reflexão muito complexa, impossível nessa curto espaço epistemológico. De fato, você tem razão, a Beleza e a Arte (uma de suas principais manifestações) são conteúdos fundamentalmente sociais. Agora, isso não implica numa relativização do gosto ou entendê-las como simples expressão de classes, estratos ou camadas sociais. De forma muito resumida, penso a beleza como um movimento inicialmente composto por um sentimento desinteressado (não instrumental) tornado sensível pela Forma (Kant). E, terminando com a sensação da catarse aristotélica, a qual revela o mundo como totalidade e humanidade (Lukács). Trata-se de um movimento que vai do particular para o geral, tornando-se, mais do que sentimento ou sensação, uma forma de conhecimento da realidade.
    Enfim, trata-se de debates que devemos introduzir e fazer circular para tornar os movimentos sociais algo grande, uma reivindicação histórica e legítima; e não um simples sentimento reativo de indignação e revolta, embora esse é o verdadeiro estopim da consciência.
    Apesar desse longo comentário, repito que concordo inteiramente com você. Muito obrigado pelos comentários e incentivo.
    Abraços.

  2. Olá Eduardo, parabéns pelo texto. Recebo-o particularmente com muita satisfação, num momento como esse, de ampliação dos debates quanto as funções sociais e políticas do espaço público, nessa nova era criada pelo movimento “ocuppy”.
    A reflexão sobre novas possibilidades de de integração social tendo os espaços urbanos como seus mediadores é aspecto de grande interesse para quem vive em megalópoles como eu, que sou morador nativo de São Paulo.
    Não podemos, todos nós, esquecer no entanto, que há uma outra problemática que não aparece em seu texto: a da inclusão – social, política, cultural. É fundamental, quando falamos em espaços públicos, que façamos referência no sentido de buscar caminhos para esse processo de inclusão de identidades e gêneros. O espaço público, tanto quanto esteticamente “belo” (confesso que tenho um pouco de medo desse conceito, quando é deligado de outro fundamental: “social”), tem de ser includente. Tem de primar e defender sua função política básica – aquele inventada pela Ágora grega e reiventada na Revolução Francesa: a do debate e da defesa da liberdade de expressão e manifestação política, artística, estética, etc. Grande abraço e, mais uma vez, parabéns pelo texto.

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