A análise do discurso na teoria pós-colonial: Crítica da representação e busca de um discurso híbrido. Parte III

Seguindo a ideologia dos dados abertos e Creative Commons license, publicamos anotações de um curso/oficina que realizamos sobre a questão do discurso na teoria pós-colonial, focando-se na crítica das noções de representação e essência; tendo como corolário a busca de um discurso híbrido, o qual possibilite a construção de formas de vida alternativas. No desenvolvimento teórico e argumentativo procurou-se realizar também a crítica ao binarismo da metafísica ocidental. Fragmentaremos as anotações em três partes com suas respectivas publicações.

 

EM DIREÇÃO A UMA HIBRIDIZAÇÃO

O discurso ocidental possui então a sua própria imagem e seu processo típico de representar o outro. Toni Morrison em seu Playing in the dark (1993), investiga na literatura ocidental, especialmente norte-americana, a representação do que ela chama de africanismo, ou seja, “a escuridão denotativa e conotativa que passarão a significar os Africanos” (MORRISON, 1993, p.27). Esse desvelar crítico representacional, nos permite questionar, de um lado, a identidade americana, e de outro, também o homem branco enquanto fundamentalmente distinto da mulher e do negro.
Assim, do ponto de vista da literatura, das normas e possibilidades dos discursos, a crítica pós-colonial permitiria, não somente revisar o cânon ocidental, mas também produzir uma melhor compreensão dele. Não se trata então de negar o que o ocidente produziu, mas de o reler com um novo olhar, mais desconfiado e crítico.
A construção da identidade num ambiente pós-colonial passa pela análise da mobilidade dos indivíduos no processo de globalização, a qual não somente redefiniria os modos de vida e consumo, mas, em consequência, igualmente a possibilidade e limites do discurso. Essa intensa mobilidade faz de todos nós espécies de “emigrantes”. Isso já havia sido sublinhado por Marx e Engels no “Manifesto do Partido Comunista”:
E isso tanto na produção material quanto na intelectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial. (MARX; ENGELS, 2001, p. 49)

A colonização provocou o deslocamento de populações, o contato entre diferentes culturas, relações assimétricas de poder, cujo efeito seria uma primeira forma de hibridização identitária.
Segundo Homi K. Bhabha (1989, 1998), não existiria pertencimento que seja necessário e eterno e a figura do imigrante representa uma situação significante para uma minoria que resiste a totalização. A hibridização, segundo ele, constituiria um lugar de negociação política, construção simbólica e construção do sentido, que não somente desloca os termos da negociação, mas permite inaugurar uma interação ou um dialogismo entre os extremos dominante e dominado (BHABHA, 2007, p. 168). Isso favorece o nascimento de uma sociedade multicultural.
Paul Ricoeur (1985) assinala o aspecto temporal da identidade quando elabora o conceito de identidade narrativa, a qual absorve a mudança e a mutabilidade na coesão de uma vida. Isso se aplicaria tanto à comunidade, como ao indivíduo. Assim compreendida, a identidade não é uma etiqueta colada. O sujeito participa ativamente da narração de sua própria vida e torna-se também leitor da história dessa vida. A identidade se faz e se desfaz. Para Stuart Hall (2006), a identidade é uma história efetiva sobre as diversas posições que ocupamos em nossa vida. Ela mistura os diferentes papéis e é sempre escrita em conexão com a diferença. A globalização em sua hibridização com o local fez surgir o “glocal” e acelerou a imigração, a mestiçagem, o multiculturalismo e a multilinguagem. Esse fato tornou a questão da identidade um problema complexo. O fenômeno da colonização favoreceu brutalmente o perturbado equilíbrio identitário das sociedades pré-coloniais em uma tal dimensão que o retorno às raízes se torna impossível se feito de forma autêntica. Entretanto, permanecer em um estado totalmente líquido, sem nenhuma referência identitária não parece ser algo desejável. Então torna-se premente a questão de como reconstruir uma identidade no acontecimento pós-colonial.
Os estudos pós-coloniais são um campo muito vasto com posturas e perspectivas diferenciadas, porém, em geral, e especialmente em Saïd e Bhabha, a construção de uma identidade híbrida passa necessariamente pela crítica à representação colonial de identidades fixas e inautênticas. Suas análises nessa perspectiva giram em torno da construção da identidade híbrida como um campo de forças em permanente negociação e com a criação de um terceiro espaço. Engendra-se assim um complexo processo de negociações com a história pessoal e coletiva para a possibilidade da vivência desse terceiro espaço.
A complexidade legada ao mundo pós-colonial pelo fenômeno do colonialismo se encontra captada no discurso de Bhabha. A angústia nos liga às memórias do passado, enquanto lutamos para escolher uma via por meio da qual a história se abra na ambiguidade do presente. A permanente e inquieta negociação sobre o que somos e sobre o que queremos ser numa perspectiva que é tanto global como local. Entretanto, a globalização, apesar dos benefícios que oferece ao mundo, por exemplo as ricas possibilidades de um “bi” ou “plurilinguismo”, também revela uma nova realidade hegemônica. Essa hegemonia que hierarquiza as culturas, excluindo às diferentes, não consegue resolver o problema da identidade. As identidades híbridas devem ser construídas permanentemente num processo temporal constante e crítico. Essa hibridade corresponde a um terceiro espaço que se situa, ao mesmo tempo, no encontro e num novo espaço em relação às posições puras, graças às quais ela emerge. Sem nenhuma obrigação de se limitar às exigências das partes que a constitui, o sujeito híbrido tem toda a possibilidade de se posicionar no terceiro espaço e de se transformar segundo uma nova orientação. Assim, Bhabha propõe que as intersecções das culturas forneçam ao sujeito a oportunidade de considerar suas estratégias de futuro. Esse espaço “entre-deux”, que ele chama de interstício, permite ao sujeito analisar as coisas de maneira mais objetiva. Isso se torna possível porque os espaços intersticiais oferecem um terreno de elaboração dessas estratégias de si – singular e comum – que iniciam novos signos de identidades (BHABHA, 1989; 1998). Essa espécie de espaço liminar, no qual o sujeito negocia sua posição, para enfim decidir sobre sua identidade, possibilita a superação da perturbação inicial engendrada pelo contexto híbrido.
A ideia da negociação a partir do interstício, a qual Bhabha tanto insiste, assim como aquela da identidade narrativa, se ilustra em Saïd que, em sua própria vida, transforma o exílio em alguma coisa de salutar e rentável. Ele toma essa realidade “terrível de viver”, plena de “uma esmagadora tristeza do afastamento”, transformando-a numa mina de escavação (SAÏD, 2000). O interstício em seu caso se traduz pelo exílio. Saïd constrói sua identidade no interstício da América e da Palestina, permanecendo nesse espaço “entre-deux” (SAÏD, 1985; 2007).
O exílio sofrido por Saïd, mergulha-o numa situação híbrida, tornando-se eventualmente para ele, não em uma realidade punitiva, mas um campo para cultivar e experimentar (LAETITIA, 2010, p. 51). Saïd transforma assim, a ideia de exílio em um conceito libertador e sinalizador da construção de uma identidade híbrida e móvel, negociada a cada etapa da vida. Na identidade híbrida emerge o cuidado-de-si e novas possibilidades de existências nas bordas da normalidade colonial.

 

Dr. Eduardo Cardoso Braga
São Paulo, abril de 2018

 

Referências

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