A análise do discurso na teoria pós-colonial: Crítica da representação e busca de um discurso híbrido. Parte II

Seguindo a ideologia dos dados abertos e Creative Commons license, publicamos anotações de um curso/oficina que realizamos sobre a questão do discurso na teoria pós-colonial, focando-se na crítica das noções de representação e essência; tendo como corolário a busca de um discurso híbrido, o qual possibilite a construção de formas de vida alternativas. No desenvolvimento teórico e argumentativo procurou-se realizar também a crítica ao binarismo da metafísica ocidental. Fragmentaremos as anotações em três partes com suas respectivas publicações.

 

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Segundo Butler (1998, 2004), podemos expressar uma identidade, porém não uma sexualidade. Ela faz uma distinção entre instinto e impulso, os quais remetem para as dimensões biológica e cultural respectivamente. Butler desvela as relações entre o discurso e a construção da identidade. O discurso como atividade performática está submetido ao controle, pois sua função é a criação de horizontes nos quais podemos definir nossas relações e identidades. O gênero é então visto como uma codificação imposta pelo horizonte discursivo, o qual determina e normatiza o que é possível ser expresso e conhecido (BUTLER, 1997, 2004). A normatização do gênero torna-se então uma variante da relação colonizado-colonizador, na qual se estabelece as possibilidades de identidade e expressão dessa identidade numa atividade performativa/discursiva.
O discurso que reproduz a separação centro-periferia, essencial na epistemologia colonial, é o responsável por engendrar a concepção de marginal para tudo aquilo que lhe é estranho, bizarro. A atividade discursiva predominante no sistema colonial procura desacreditar e desestabilizar qualquer discurso que possa ser contrário ou diferente. É na atividade performativa dos discursos coloniais que se constituem as pessoas ou grupos de indivíduos que se apresentam como diferentes e passam então a ser objeto de estudo e apropriação do discurso colonial.
Saïd em seu livro Orientalismo (2007) nos adverte que esse conceito, o orientalismo, é um discurso que exibe o estilo de dominação ocidental, o qual reestrutura e impõe uma autoridade sob o Oriente. Assim, o Oriente é uma construção imaginária do Ocidente. O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe dá realidade e presença no Ocidente e para o Ocidente. As duas entidades tornam-se um sistema binário no qual um depende do outro, um se reflete no outro (SAÏD, 1993; 2000; 2007). Consequentemente, a resistência ao discurso passa, antes de tudo, por uma crítica ao antropocentrismo do Ocidente, que tende a reduzir a objeto de análise o resto do mundo, dominando e monopolizando os campos teóricos e acadêmicos. O pós-colonialismo testemunha as diferenças em força das representações e seu estatuto de verdade (BHABHA, 1998). Nessa perspectiva, a colonização e seus derivados contemporâneos engendram uma redução ao silêncio e uma aculturação aos povos dominados. Uma aculturação que foi interiorizada tornando-se uma força inconsciente. Resta então refundar as perspectivas das disciplinas, não para defender uma postura de incomunicabilidade entre o império e sua periferia, mas buscando ultrapassar a colonização, eliminando seus prejuízos, suas bases fundadoras e seus lugares entre a linguagem, a verdade e o poder. Trata-se de uma crítica radical e fundamental à própria concepção e performatividade da representação. Busca-se então formas discursivas mais expressivas e menos mediatizadas, mais próximas às posições existenciais diferenciadas e individualizadas.
A construção de uma identidade híbrida passa, antes de tudo, pela crítica da representação criada pela Europa de um sujeito soberano, dono de seus atos e portador de uma racionalidade que pode libertá-lo das amarras medievais, da ignorância ou da minoridade.
Essa crítica de discursos pretensamente universais que na verdade expressam a perspectiva de um sujeito localizado, histórico e metafísico é fundamental e radical no pensamento pós-colonial. Ela se estende, inclusive, a algumas categorias marxistas que universalizam as diferenças e simplificam a complexidade da divisão do trabalho no capitalismo. Como bem nota Gayatri Spivak em sua hoje clássica obra “Pode o subalterno falar? ” (2010), a concepção universal do proletário reduz ao silêncio as populações dos antigos países periféricos, tornando-as apenas parte do que se nomeia subproletariado ou lumpemproletariado. As raízes etimológicas da palavra lumpemproletariado expressa a discursividade performática de algo negativo, bizarro e diferente. O termo lumpemproletariado, do alemão Lumpenproletariat, significa seção degradada e desprezível do proletariado, de lump (pessoa desprezível) e lumpen (trapo, farrapo) mais proletariat (proletariado ou lumpesinato ou ainda subproletariado). Transformar boa parte do mundo numa entidade dessa natureza é condená-la ao silêncio ou a um discurso sem importância, sem teor de verdade, sem epistemologia ou expressividade.
A crítica pós-colonial é então uma crítica da modernidade. Lyotard em sua obra: A condição pós-moderna (1988), esboça os principais aspectos dessa crítica. O primeiro é a recusa da ideia de progresso como motor do mundo ocidental. A segunda é a crítica a ideia de sujeito soberano que possui uma razão e consciência absoluta que funciona como tribunal da verdade e das normas. Para Habermas, essa Razão se encontra “desmascarada” numa vontade de domínio instrumental (1988, p. 4). O impulso de fetichizar ou “coisificar” todas as coisas, a partir da ideia universal de mercadoria, passa a ser interpretado como o discurso colonizador por excelência. Nesse sentido, a Razão instrumental é mais do que uma atividade performática que pode ser salva por uma Razão Comunicativa ou Substantiva, como no projeto habermasiano e frankfurtiano respectivamente. O problema do projeto iluminista não foi simplesmente de propor uma sociedade racional, concebendo essa racionalidade como puramente instrumental. A “perda de sentido”, na perspectiva pós-colonial, se deve a uma colonização da razão instrumental sobre outras possíveis formas de razão. Por isso, não é necessária uma “despedida da razão”, mas sim sua reavaliação e reivindicação como argumento para performatividades diferenciadas. Por exemplo, uma razão mítica que considera as cosmologias tribais como uma expressão com sentido lógico e verdadeiro.
Uma teoria crítica não deve se opor à razão, nem mesmo à razão instrumental, mas apenas à ação de colonização das esferas instrumentais da vida. Esse primado da razão instrumental está notadamente ligado à empresa de dominação ocidental que por detrás de seus alegados princípios universais, impôs suas considerações, reduzindo ao silêncio tudo o que constitui sua alteridade. Foi o conceito de “hegemonia” de Gramsci (1978) e o alçar voo dos estudos subalternos que permitiram o surgimento dos estudos pós-coloniais.
O exercício de desconstruir a linguagem colonial é a principal atividade crítica pós-colonial, a qual abre as possibilidades para a expressão daquilo que é diferente. A desconstrução é fundamentalmente discursiva, ou seja, linguística, e tem como objetivo desvelar o sistema de oposições binária que é o fundamento da epistemologia e performance discursiva colonial. Esse binarismo estrutura a oposição entre a norma e sua violação (DERRIDA, 2004). A norma é a visão do colonizador sobre si mesmo, e a violação dessa norma é a visão que o colonizador estabelece do colonizado, o qual torna-se aberração e objeto de saber de um sistema discursivo que o conduz ao silêncio e ao desaparecimento enquanto identidade diferenciada.
Apoiado em Derrida (2004), o projeto pós-colonial desvela as margens das palavras a fim de iluminar as oposições conceituais que suportam e fundam o discurso colonial. A crítica à representação conduz à pergunta fundamental do pensamento pós-colonial: Como dar a palavra ao subalterno? Como esse sujeito subalterno pode falar e construir uma identidade sem a mediação de discursos que procuram interpretá-lo e dizer o que ele é. Trata-se aqui também de uma crítica ao discurso do intelectual que pretende expressar o pensamento, a identidade, a performatividade do outro, aquele que não tem voz. Nesse sentido, o que podemos ouvir é um conjunto de discursos que pretendem representar a voz do subalterno, criando um horizonte no qual a identidade é fixada já de antemão.
Spivak (1988; 2010) declara que a posição do subalterno se dá exatamente pelo confisco de sua palavra. Sua identidade é assim fundada pelo negativo, em total oposição ao discurso colonizador, o qual torna-se o único espaço do saber, do significado e da possibilidade de fala. Trata-se então de uma crítica a uma identidade fundada em um essencialismo que nega o caráter questionador do pós-colonial e sua visão intrinsecamente multicultural do mundo. Assim, fica claro que os estudos pós-coloniais não visam substituir o modelo colonial por uma pluralidade de modelos nacionais, mas permitir àqueles que não podem se expressar nesse quadro o acesso e cultivo da palavra, construindo uma expressão híbrida e um perspectivismo existencial.
A expressão de uma dimensão pós-colonial do Ser, somente pode ser obtida por meio do trauma, o qual torna-se a única ontologia possível (MORRISON, 1993; BOUSON, 2000). Levar o trauma e a crise a sério é não simplesmente produzir reajustes ou costuras no discurso, porque o que está em jogo é a própria possibilidade de transcender a situação colonial. O trauma é a possibilidade de revelação de uma situação existencial dada na qual não se pode simplesmente optar por um lado, mas viver um terceiro espaço, habitar as fronteiras e a alteridade. Somente uma linguagem traumatizada, rompendo o âmbito totalizante da ontologia ocidental, balbuciando ou gaguejando a linguagem dominante pode ser o mais fiel possível à alteridade (DELEUZE; GUATTARI, 1977).
Trata-se então de uma reapropriação do discurso, o qual deve expressar o “peso” de sua experiência. Mas, como se reapropriar do discurso que foi confiscado? Para os povos e países periféricos, com passado colonial, existe a questão de como se expressar fora do quadro colonial, já que a própria língua foi dado por essa relação. A língua estandardizada de origem colonial enfrenta sua hibridização com as línguas indígenas e locais, gerando um outro bizarro que geralmente é visto como degradado, ou degradante diante de uma suposta pureza original. Desde sempre, as elites cultivadas da periferia, dos países dominados, se submeteram a uma dominação simbólica da língua colonial, procurando sempre uma performance mimética, tanto para os discursos com valor de verdade, como para os estéticos expressivos. Boa parte do projeto moderno brasileiro foi desenvolver um uso da língua que subvertesse as formas imperiais, substituindo assim uma língua idealizada por uma língua em movimento; procurando a performance da língua em seu rico cotidiano e distanciando-se assim dos modelos estandardizados. Essa língua híbrida expressa o “fardo” de sua condição, aquela de uma experiência linguística inadequada entre a língua do império e a realidade do mundo vivido. Esse espaço de distância seria um espaço crítico, uma forma de autenticidade e um culto à memória. Uma repetição da tradição linguística, porém que não se cristaliza numa identidade fixa. Trata-se então de reivindicar um igual valor a esta língua e de afirmar uma identidade liberta dos julgamentos coloniais. Uma abertura que seria ao mesmo tempo, uma crítica a uma identidade fixa e uma afirmação de uma dupla, ou mais, identidades expressas por meio de uma herança linguística (HALL, 2006).
Em relação a esse propósito, temos o importante trabalho de ASHCROFT; GRIFFITHS e TIFFIN, intitulado: The Empire writes back. Theory and Practice in Post-colonial Literatures (1989), no qual se elabora a proposta de uma posição pós-colonial que retrabalha os textos engendrados pela dominação colonial. Busca-se, de forma criativa e crítica; uma (re)-criação e (re)-apropriação dos discursos com o objetivo de um (re)-volta em direção ao centro. O retorno de um colonial reprimido. Assim, a preocupação maior dos estudos pós-colonial é exatamente a linguagem, que se torna então o principal locus das negociações entre modos de ser-no-mundo, os quais permitem que as culturas “falem”. Busca-se aprofundar e superar a herança saussuriana expressa na ruptura entre língua, que é um sistema codificado de convenções próprio de um determinado grupo linguístico, e a fala, a qual está submetido às variações individuais. A possibilidade do subalterno falar passa então por resgatar e superar a herança de Saussure (2002). À diferença entre língua e fala, opta-se pela noção de uso, de performance, estabelecendo-se como modelo ativo de uma comunidade. Rejeita-se a total sujeição à língua, compreendida como um conjunto pré-estabelecido de possibilidades e de limites bem determinados, os quais definem a norma culta. Essa nova linguística, surgida na estrutura de práticas contradiscursivas, responde, de forma fática e criativa, à dominação simbólica instaurada pela linguagem do centro.

 

Dr. Eduardo Cardoso Braga
São Paulo, janeiro de 2018

 

Referências

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