A análise do discurso na teoria pós-colonial: Crítica da representação e busca de um discurso híbrido. Parte I

Seguindo a ideologia dos dados abertos e Creative Commons license, publicamos anotações de um curso/oficina que realizamos sobre a questão do discurso na teoria pós-colonial, focando-se na crítica das noções de representação e essência; tendo como corolário a busca de um discurso híbrido, o qual possibilite a construção de formas de vida alternativas. No desenvolvimento teórico e argumentativo procurou-se realizar também a crítica ao binarismo da metafísica ocidental. Fragmentaremos as anotações em três partes com suas respectivas publicações.

 

Introdução

 

“[…] os centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência, muito mais do que por sua zona de potência […]” (DELEUZE; GUATTARI, (1996, p. 96).

 

Os estudos pós-coloniais, especialmente nas áreas da teoria literária e da comunicação em geral, desenvolveram-se a partir dos anos 80 com uma nova concepção do conceito e da experiência “colonial”. Esses estudos amplificaram-se, enquanto disciplina acadêmica, principalmente após a publicação por Edward Saïd de sua obra “O Orientalismo” (2007). Os trabalhos de Bhabha (1998) e de Spivak (2010) igualmente contribuíram de forma considerável para a estruturação desse novo campo de estudo. Desde suas raízes, os estudos pós-coloniais e as teorias associadas a eles tiveram um caráter interdisciplinar e, por sua vez, passaram a dialogar e mesmo influenciar outros campos do conhecimento. Podemos mesmo dizer que eles são transdisciplinares, ou seja, por meio da interdisciplinaridade criou-se um novo campo de estudo com múltiplas relações e consequências2.

O termo pós-colonial pode significar três acepções distintas: (1) um sentido puramente histórico, no qual o termo “pós-colonial” marca uma ruptura temporal radical entre o período anterior e posterior em relação à independência. Segundo essa acepção, somente o que se liga ao período posterior ao fim da colonização é levado em conta; (2) um sentido que reenvia ao corpo literário e cultural pós-colonial, normalmente na língua herdada dos colonizadores; (3) um sentido crítico que engendra uma teoria onde os discursos e os dados geradores de identidades são interrogados.  Essas três acepções acabam se inter-relacionando nos principais trabalhos da investigação pós-colonial, sendo, entretanto, a terceira acepção a mais importante e explorada tanto pelos clássicos como pelos novos autores desse campo de estudo.

Os estudos pós-coloniais são um domínio transdisciplinar, no qual o desenvolvimento crítico acontece em um campo eclético e sem fronteiras nacionais, permitindo visadas sociológicas, filosóficas, antropológicas, psicanalíticas, históricas, políticas, literárias e artísticas. A necessidade dos estudos discursivos pós-coloniais deriva da incapacidade de a teoria tradicional e eurocêntrica explicar convenientemente as complexidades e diversidades culturais próprios dos discursos e das escrituras pós-coloniais. O tema da hibridização cultural é importantíssimo e foi muito explorado pela literatura crítica pós-colonial e, especialmente, por Bhabha em duas obras clássicas: “Nation and Narration” (1990) e “O local da cultura” (1990).

Nesse novo contexto, o pós-colonial não seria simplesmente a definitiva ruptura com a metrópole, instaurada com o término do processo de independência e estabelecendo com esse gesto uma nova era com novas formas de discursos e trabalhos literários. Conceber o pós-colonial dessa forma restrita é estabelecer dois períodos ontologicamente e politicamente distintos: o pré-colonial e o pós-colonial. Os estudos pós-coloniais e suas teorias desenvolveram-se no sentido de contestar essa visão dicotômica e temporal das relações coloniais. Bill Ashcroft define o novo conceito de pós-colonial: “toda cultura afetada pelo processo imperial desde o momento da colonização até nossos dias” (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 1989, p.15 – tradução nossa). Essa cultura afetada pelo processo colonial expressa-se por meio de discursos e representações que situam, no tempo e no espaço, possibilidades de identidades, nas quais o processo de dominação se manifesta claramente ou de forma escondida como sombras no inconsciente. Essas representações determinam o que pode ou não pode ser e, por imitação, as formas de vida possíveis e as relações de poder legítimas. São discursos performativos que criam uma realidade, a qual estrutura os comportamentos, as identidades e as relações sociais. O pós-colonial define-se então como um conceito que reflete uma relação com performatividade3 representativa, na qual o colonizado se representa segundo determinações. Nesse sentido, a teoria pós-colonial filia-se à tradição que vai de Maquiavel a Foucault, a qual concebe o poder como uma relação ou sistema de relações e não uma propriedade de um indivíduo, substância ou instituição, tais como o Estado, os poderes democráticos – legislativo, judiciário e executivo – ou as instituições sociais.

O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada (Foucault, 1988: 89).

 

Assim a performatividade do poder vai muito além das macrorrelações e se instala de forma pervasiva nos discursos e ações cotidianas, engendrando tipos de relações e influenciando nossas concepções de nossos corpos e identidades subjetivas. O corpo é vulnerável à linguagem, pois em sua performatividade ela constitui nossa relação com ele. Ela cria e recria esse corpo, o qual é sustentado, ameaçado e recriado pela linguagem (BUTLER, 1997). A ideia que nossa relação com nossos corpos seja uma questão de poder ou de colonização, engendrada pelos discursos, gera a necessidade de investiga-los como fundamento das identidades fixas e abertura para as híbridas.

 

FOUCAULT E A NOÇÃO DE DISCURSO

Foucault e sua teoria do discurso tornam-se referências fundamentais na constituição das teorias pós-coloniais. A colonização é compreendida como fundamentalmente uma relação mediada por discursos, os quais fornecem suas possibilidades e limites, no interior de uma dada cultura. As representações políticas são constituídas por meio desses discursos. A colonização é uma prática imperial, ou seja, ações de um centro normalizador sobre uma periferia rebelde às normas. Essa colonização atua tanto em âmbito geográfico como mental. A relação centro-periferia sempre expressa uma determinada hierarquia, na qual o centro impõe determinado nível de silêncio para as possiblidades de fala performativa da periferia. Então, uma das tarefas essenciais dos estudos pós-coloniais é o questionamento do lugar da periferia na história e a crítica de um discurso que situa esse lugar como espaço naturalizado e essencial. Trata-se também, além de desvelar as representações coloniais, de buscar e construir discursos que devem ser regidos por uma estética, lógica e linguagem diferenciais, não essencialistas, questionadoras das identidades fixas, as quais são a expressão ideológica da dominação central.

Discurso colonial é uma expressão muito usada na teoria contemporânea e na crítica pós-colonial. Esse termo tem clara veiculação com a teoria do discurso derivada de Foucault. O sentido foucaultiano da expressão tem pouco a ver com o ato de falar no sentido tradicional. Para Foucault, o discurso é uma área fortemente limitada do conhecimento social, um sistema de declarações do qual o mundo pode ser conhecido. A principal característica deste é que o mundo não é simplesmente aquilo que pode ser falado, mas sim, é através do próprio discurso que o mundo é trazido à existência. É por meio desse discurso que falantes e ouvintes chegam a uma compreensão sobre si mesmos e sua relação com o outro, bem como seu lugar no mundo. Em outras palavras, é por meio desses discursos que a subjetividade é construída. É o complexo de signos e práticas que organizam a existência social e a reprodução social. Há certas regras tácitas controladoras das declarações que podem ser ditas e que não podem ser ditas, e essas regras determinam a natureza do que é o discurso. Existe um número limitado de declarações que podem ser feitas dentro das regras do sistema, essas regras é que são investigadas por Foucault. Quais as regras que permitem que certas declarações, e não outras, podem se manifestar? Quais as regras que permitem um sistema classificatório? Quais as regras que permitem identificar certos indivíduos como autores? Essas regras dizem respeito ao sistema classificatório, a ordenação e as distribuições desses conhecimentos do mundo que o discurso nos capacita a desvelar. Um bom exemplo de um discurso é a medicina, em termos mundanos nós simplesmente pensamos na medicina como a cura dos corpos doentes. Mas a medicina representa um sistema de declarações que podem ser feitas sobre o corpo, sobre a doença e sobre o mundo. As regras deste sistema determinam a forma como vemos o processo de cura, a identidade do doente e, de fato, o nosso próprio relacionamento com o mundo. Existem certos princípios de exclusão e inclusão, que operam dentro desse sistema. Algumas coisas podem ser ditas e algumas coisas não podem. O discurso é importante porque une poder e conhecimento juntos. Aqueles que têm poder controlam o que pode ser conhecido e a forma como ele é conhecido. Esta ligação entre conhecimento e poder é particularmente importante nas relações entre colonizadores e colonizados e tem sido amplamente estudada por Edward Saïd em suas discussões sobre o orientalismo, na qual ele aponta que este discurso, esta maneira de saber sobre o “Oriente”, é uma forma de manter o poder sobre ele. O trabalho de Saïd estabelece maior ênfase sobre a importância da escrita e textos literários no processo de representações. A insistência de Saïd sobre o papel central da literatura na promoção de um discurso colonialista é elaborado em seus trabalhos posteriores (SAÏD, 1993), nos quais ele argumenta que o romance do século XIX surge como parte da formação do império e age reflexivamente com as forças imperiais para controlar e estabelecer o imperialismo como a ideologia dominante do período. Essa ênfase faz de Saïd um pensador fundamental para desvelar os discursos literários pós-coloniais com impacto significativo na teoria literária. A visão de Foucault do papel do discurso, porém, é ainda mais ampla e mais abrangente, uma vez que ele argumenta que o discurso é a característica fundamental da própria modernidade. O discurso da modernidade ocorre quando o que é dito, o “enunciado”, torna-se mais importante do que a “enunciação”, ou seja, a performance de como ele é dito. Nos tempos clássicos, pré-modernos, o poder intelectual podia ser mantido pela retórica, pela persuasão de um falante “discursando” a um corpo de ouvintes. Mas, gradualmente, a “vontade de verdade” passou a dominar o discurso e as declarações passaram, obrigatoriamente, a conter o sentido de verdadeiras ou falsas. Quando isso ocorreu, já não era o ato do discurso, mas o assunto do discurso que se tornou importante (FOUCAULT, 1980; 1987; 2007). O fator crucial para a teoria pós-colonial é que a “vontade de verdade” está ligada à “vontade de potência” da mesma forma que o poder está ligado ao conhecimento. A vontade das nações europeias para exercer o controle sobre o mundo levou ao crescimento dos impérios e foi acompanhada integralmente com certas noções de verdade, racionalidade e utilidade (GIKANDI, 2000).

O “discurso eurocêntrico”, ou o “discurso da modernidade”, é um sistema de declarações que podem ser feitas sobre o mundo, envolvendo certas suposições, preconceitos, cegueiras e “insights”. Esse sistema tem uma proveniência histórica e exclui outros possíveis igualmente válidos. Todas essas declarações e tudo aquilo que poder ser incluídos nesse discurso, assim, tornam-se protegidos pela afirmação da “verdade” (GIKANDI, 2004).

A colonização deve ser desvelada por meio de sua atividade discursiva, concebida segundo uma perspectiva foucaultiana, ou seja, uma prática discursiva que engendra uma violência epistêmica. A epistême, tal como a concebe Foucault em sua obra A palavra e as coisas (2007), não se resume a uma simples ideologia, mas é a própria estrutura da ideologia, seus alicerces, o que torna sua existência possível. A epistême edifica a ideologia, a qual suporta as produções intelectuais de uma determinada época.

O conceito de “poder” é a investigação central do texto de Foucault desenvolvida ao longo dos três volumes de A História da Sexualidade (FOUCAULT, 1988, 1984, 1985). Esse poder é engendrado na circulação e distribuição do conhecimento que reforça ou impõe normas a todos nós. Assim, é no discurso que se realizam as lutas de resistência ou de reprodução das relações hierárquicas e culturais. Foucault chama essas formas discursivas, as quais criam as realidades, de “poder-conhecimento”, Butler (1998; 2004) as chama de performatividade. O “poder-conhecimento” é uma forma de poder que determina como o conhecimento circula, quais as suas validades e determina seus efeitos sobre nossos comportamentos. No limite, determina o que somos e o que pensamos que somos, além de determinar nossos comportamentos e formas de expressão de identidades, que é o seu efeito performativo (BUTLER, 1998).

 

Dr. Eduardo Cardoso Braga
São Paulo, agosto de 2017

 

Referências

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